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Agências Reguladoras em Saúde precisam mergulhar nas “Caixas de Areia”

Article-Agências Reguladoras em Saúde precisam mergulhar nas “Caixas de Areia”

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Sanbdbox para inovação e maior proteção aos usuários

De fevereiro a maio de 2022, um ‘aplicativo facial capaz de verificar a idade biométrica de uma pessoa’ realizará um programa de testes promovido e incentivado pelo governo do Reino Unido. O desenvolvedor utilizará o app para identificar a idade do consumidor de modo que o varejista possa liberar ou não a venda de bebida alcoólica. Funcionários verificarão a idade do cliente para cumprir a legislação atual, comparando com o resultado do aplicativo. Se o teste for bem-sucedido, é provável que toda regulação e legislação do país seja revisada para permitir que varejistas “vendam álcool após uma decisão tomada pela tecnologia”. Em 4 meses, a plataforma age-check será testada em várias lojas de conveniência no noroeste da Inglaterra, sendo monitorada em tempo real. Como é possível alterar uma legislação que vigora há mais de meio século baseado num teste de 120 dias? O nome desse engenho é Regulação Sandbox (caixa de areia).

Um velho mantra do ‘design thinking’ especifica: “Antes de descartar uma ideia, veja se ela pode ser testada a um baixo custo”. Essa premissa de prototipação voltou a emergir nos últimos anos. Sandbox é uma “plataforma experimental” onde aplicações inovadoras podem ser operacionalizadas, alteradas e validadas sem interferir no meio de produção ou transgredir a regulação vigente. Nela, os desenvolvedores podem (1) executar todas as operações da inovação; (2) num contingente limitado de participantes (usuários); (3) de forma investigativa; (4) por um tempo determinado; (5) sendo totalmente monitorada pela Agência Reguladora. Se houver inconformidades que mostrem a inviabilidade da aplicação, sua inconsistência, ou não aderência aos princípios de proteção dos usuários, a perda de esforço atinge pouquíssimo alcance. O conceito de Sandbox-Regulatório está sendo utilizado no mundo todo (inclusive no Brasil) como um espaço seguro para avaliação de requisitos regulatórios.

Trata-se de um ambiente controlado e desenhado pelo Regulador, com poucas regras definidas, onde a própria agência acompanha a experimentação dos projetos. Como as “caixas de areia” dos parques infantis, onde as crianças brincam livremente com segurança e sob a supervisão de um adulto, as sandbox têm limites claramente definidos, mas poucas regras ou entraves para a criatividade do provedor”. Esse “ambiente de prova”, onde os players-startups testam suas criações sem se submeter aos ritos normativos tradicionais, é um marco regulador das agências para os próximos anos. Se forem bem-sucedidas, as empresas que participam dos programas de sandbox das agências podem receber autorização permanente para o seu negócio, cuja nova regulação (se houver) será estendida para todo o setor. Depois do estouro das fintechs, vários países passaram a abrir caminho em seu ecossistema regulador para “espaços normativos temporais”, onde produtos, serviços e modelos de negócios possam ser submetidos a “testes de stress” em um mundo real. Embora tenham flexibilidade experimental, os desenvolvedores têm limites claros, se obrigando a um contínuo status-report do projeto, compartilhando com a agência os resultados das ferramentas “submetidas as condições imprevisíveis do mundo figital”.

Agências reguladora de saúde precisam mudar. Se tudo o que fazem está de acordo com o que deveriam fazer, ou o que a legislação lhes impõe, é bem provável que tudo o que não fazem está desalinhado das demandas sociais. Certificar que tecnologias (medicamentos, terapêuticos, devices, modelos, etc.) não causem efeito nocivo a população é imperativo. Mas e os efeitos prejudiciais das tecnologias que não chegam aos usuários pelos atrasos operacionais e conceituais das agências? Se todos os ritos normais de certificação fossem cumpridos na pandemia é provável que as vacinas só chegassem à população com meses de atraso. Pós-Covid19, agências sanitárias precisam ser gerenciadas por ‘poderes renascentistas’ e definidas por ‘legislações iluministas’. Na terceira década do século XXI, reguladores como ANS, ANVISA, DATASUS, etc. não podem ser somente verticais autorizadoras, ou núcleos de certificação definida por alguma hierarquia interna. Não são mais satélites do sistema, são parte de uma Rede que não pode funcionar só com organogramas de comando, que disputa espaços, ruelas e becos. Devem manter a sua autoridade, sua independência reguladora, seu distanciamento decisório, sem deixar de trabalhar em rede com todas as instâncias que atendem a população. Servir a quem serve o usuário. Isso acontece pouco no Brasil, mas poderá melhorar se as agências implantarem, por exemplo, sandboxes regulatórios.

O propósito das “caixas-de-areia” é permitir que os desenvolvedores implementem sua tecnologia em “estado selvagem” e capturem o comportamento do usuário no mundo real. Sandboxes não são dogmas voltados a “subverter a regulação”; ao contrário, se destinam a melhorá-la, modernizar os processos, introduzir mais segurança, proteção e assertividade gerada por experimentos controlados. Isso beneficia desenvolvedores, agências e consumidores. Trata-se de inserir os reguladores em uma nova órbita, criando “um ambiente experimental em que a agência possa ajustar as normas, avaliar o impacto das mudanças e depois usar esses dados para a formulação das políticas finais”. Do lado das empresas que se submetam ao sandbox, a vantagem é poder testar seus produtos com clientes diversos, reais, em ambientes não sujeitos ao cipoal de regras e normas. Podem mais: calibrar suas soluções e investimentos sabendo que estão sendo mirados pelo regulador. Um exemplo desse processo rápido de regulação ocorreu durante a pandemia, quando quase todas as agências do mundo utilizaram ‘autorizações emergenciais e circunstanciais’ para avançar nas vacinas e terapias contra a Covid-19. Sem elas a própria OMS explica que as perdas de vidas teriam sido muito maiores.

Desde que a Financial Conduct Authority (FCA) do Reino Unido utilizou pela primeira vez o modelo regulatory sandbox (2016), sua ascensão disparou, primeiro na regulação financeira (fintechs) e depois ganhando espaço nos setores de energia, transporte, turismo e saúde. Segundo dados do Banco Mundial, até 2020 ‘marcos regulatórios’ para “sandboxes” já estavam institucionalizados em 57 países. São nações que já desenvolvem caixas-de-areia envolvendo tecnologias digitais, como DFS (digital financial services), blockchain, insurtechs, KYC (“know your Customer”), etc. (confira vídeo do Pacific Regional Regulatory Sandbox”). Nos EUA, por exemplo, os estados da Flórida, Havaí, Kentucky, Nevada, Utah, Vermont, West Virginia, Nort Caroline e Wyoming já possuem projetos e estrutura jurídica para as ‘caixas-de-areia’. Embora a maioria das iniciativas teve como fim o desenvolvimento das fintechs, hoje muitos projetos já alcançam outros setores, como a Saúde, que utiliza farta engenharia de dados pessoais e deve estar aderente a novos parâmetros, como da LGPD, por exemplo. Um exemplo é “Pan-European Regulatory Sandbox”, que será lançada este ano e se concentra em blockchain. Outro é o programa “EIT Health Digital Sandbox”, desenvolvido pela EU por meio do Instituto Europeu de Inovação e Tecnologia (EIT), no qual várias empresas já se beneficiaram com aplicações de Biotecnologia, Medtech e Digital Health.

Jacob S. Sherkow, professor da University of Illinois, e do Center for Advanced Studies in Biomedical Innovation Law, descreve em seu estudo “Regulatory Sandboxes and the Public Health” (2022) como o “Emergency Use Authorization” (EUA) da FDA, programa para avaliação de tratamentos e vacinas na Covid-19, funcionou como um modelo sandbox. Sherkow vai mais longe: “Em contraste com os processos formais de aprovação da FDA, os EUAs permitem que a agência autorize – e retire rapidamente, se necessário – novos produtos em situações de emergência, usando um padrão de ‘total evidência científica’. Os EUAs se encaixam perfeitamente nos sandboxes regulatórios, sendo uma forma de governança regulatória pragmática, dialógica, baseada em princípios, limitada em tempo e escopo e projetada para melhorar, em vez de suplantar as vias regulatórias”.

Juridicamente, uma “Caixa de Areia” é um “instrumento de fomento baseado em incentivo regulatório por meio de experimentalismo estruturado, tendo como pilar indutivo uma isenção normativo-regulatória temporária”. No Brasil, a criação do sandbox regulatório foi definida pelo novo marco legal para startups (Lei Complementar nº 182/2021 – 'Marco Legal das Start-Ups'). Já existem vários projetos nacionais de sandbox, como da CVM (Comissão de Valores Imobiliários), que trata de temas como investimentos e infraestrutura para a Bolsa de Valores; do Banco Central, que avalia soluções voltadas ao mercado de crédito, consórcios, financiamentos diversos, dentre outras verticais, como, por exemplo, o Open Banking; e da SUSEP (Superintendência de Seguros Privados), uma importante e bem coordenada iniciativa de ambiente sandbox, sendo uma das entidades reguladoras a figurar na primeira edição do relatório Most Interesting in Open Finance 2021, ranking anual produzido pelo site britânico Open Future World, a mais importante fonte global de informação sobre o progresso de Open Data no mundo. A SUSEP, que também coordena e prepara a regulação do Open Insurance no país, já está na 2ª. edição de sua “caixa-de-areia” com 32 empresas aprovadas. A 180º Seguros, por exemplo, insurtech nacional que participou desse sandbox, já captou R$ 177 milhões de funding em 2022. A Simple2u, que também vai iniciar suas operações por meio do sandbox-susep, tem expectativa de chegar a 50 mil clientes em dois anos, com portfólio de seguros que segue o modelo “liga e desliga”, ou seja, as coberturas podem ser ativadas e desativadas a qualquer tempo. Alguns estados e cidades brasileiras também esquentam suas caixas-de-areia. O Estado de São Paulo criou em outubro de 2021 o seu  Sandbox-Regulatório-SP e o município do Rio de Janeiro fez o mesmo em janeiro deste ano (Sandbox.Rio), mas outras cidades e estados seguem na mesma direção, como Curitiba (PR), Macapá (AP), Foz do Iguaçu (PR), Petrolina (PE), Distrito Federal (DF), Londrina (PR) e Francisco Morato (SP). Todas tendo em mente a inovação e os projetos de “Smart-Cities”.

Mas é na saúde que as perspectivas parecem mais emergentes. Estudo publicado em 2021 por pesquisadores da agência britânica NICE (National Institute for Health and Care Excellence), intitulado “The Sandbox Approach and its Potential for Use in Health Technology Assessment: A Literature Review”, mostra como é possível aproveitar a regulação sandbox no ecossistema sanitário. “Uma abordagem sandbox tem sido usada em vários setores desde o início, como no setor financeiro. Todavia, agências reguladoras de saúde vêm desenvolvendo sandboxes focados na regulação de novas inovações em saúde, principalmente aquelas relacionadas à saúde digital, com resultados bem-sucedidos. As sandboxes de HTA [health technology assessment] podem ser úteis para antecipar os desafios na avaliação de tecnologias inovadoras, com métodos e processos à prova de futuro”. Outro estudo, publicado em 2021 pelo Columbia Business Law Review (“Regulatory Sandbox: A New Tool for Telehealth Innovation in a Post-Covid World”), avaliou a utilização de caixas-de-areia para o ambiente de Telehealth, seguindo a iniciativa de Singapura que abriu sandbox para aplicações de Telemedicina.

No Reino Unido, pesquisa realizada pela empresa britânica Orcha, publicada em 2021 e encomendada pelo NHS, objetivou “separar o joio, do trigo e do pão”. Segundo o estudo, existem mais de 327 mil aplicativos de saúde, sendo que apenas 43 deles representam 83% de todos os downloads em mHealth. Os demais aplicativos foram baixados menos de 5.000 vezes, sendo que muitos foram negligenciados. Quase dois terços não foram atualizados nos últimos 18 meses e apenas 15% dos revisados ​​pela Orcha atendem aos padrões mínimos. Ainda assim, o estudo descobriu que, embora 240 condições diferentes sejam suportadas por aplicativos de saúde, “menos de 7% dos portadores de diabetes, por exemplo, usam um device projetado para sua condição, caindo para menos de 2% dos portadores de DPOC”. Grosso modo, é um faroeste: um cenário novo, inovador, empolgante, demandante, mas que não recebeu uma supervisão regulatória que acompanhe essa evolução. Alguns apps-health (não todos) precisam ser registrados na Care Quality Commission (CQC), o regulador de todos os serviços de saúde e de assistência social da Inglaterra, que garante a qualidade e segurança do atendimento na cadeia de saúde. Essa maranha de regulações e, principalmente, o brutal crescimento das inovações no setor, fez com que o NHS concentrasse maiores investimentos em tecnologias digitais para reduzir a pressão sobre seus trabalhadores da linha de frente. A forma de realizar essa determinação foi desenvolvida pelo CQC: um sandbox regulatório para aferição de aplicações em saúde. A empresa Doctorlink, por exemplo, foi uma das seis organizações escolhidas para participar do projeto, sendo que seu aplicativo (triagem de pacientes para acesso aos serviços de médicos de família) está junto com o NHS desde o início da pandemia, suportando mais de 10 milhões de usuários.

Certamente que a adoção de ‘caixas-de-areia’ pelas reguladoras não uma é planície sem obstáculos. No Canadá, por exemplo, não falta controvérsia. À medida que o governo canadense (Health Canada) avança em um plano de sandbox, a academia e os incumbentes refilam e se mostram obstaculizadores (como acontece no Brasil e em vários outros países). “Este é um desvio completo na forma como a regulamentação normalmente funciona. A ideia de que estamos criando um 'ambiente seguro' é meio irônica”, diz Matthew Herder, diretor do Dalhousie University’s Health Law Institute. Celia Lourenco, diretora geral da Health Canada’s Biologics and Genetic Therapies, que ajudou a elaborar a nova política, explica: “Como crianças em uma caixa de areia – improvisando e usando as ferramentas à mão – uma empresa pode trabalhar com a Health Canada para decidir os padrões regulatórios à medida que avança em seu sandbox, em vez de ser restringida por regras predeterminadas. Uma empresa de biotecnologia, por exemplo, que produz ligamentos impressos em 3D, consultaria a Health Canada para elaborar um plano piloto de sandbox, coletando dados e resultados reais que posteriormente poderiam ser considerados na regulação geral”. Tradicionalmente, agências reguladoras, incluindo as nacionais, tem como mote “rejeitar qualquer trabalho colaborativo com empresas setoriais, de modo a manter a sua independência regulatória”. A Health Canada passa a atuar de forma diferente: “Pela primeira vez trabalharemos em colaboração com a indústria de modo a facilitar a aprovação de produtos essenciais para a saúde do paciente. Como reguladores, precisamos ter uma estrutura regulatória que permita a inovação e que os produtos desenvolvidos no Canadá permaneçam no Canadá”, explica a entidade. A sandbox canadense, criada após ampla consulta, pretende também reverter o padrão onde a morosidade regulatória abre espaço às inovações que venham de fora do país, com as desenvolvidas dentro dele sendo implementadas somente fora dele. Nesse sentido, em outubro de 2021, a Health Canada juntou-se a reguladores dos EUA e Reino Unido para emitir 10 princípios orientadores sobre IA nos cuidados de saúde, onde os testes experimentais contarão com o modelo sandbox, já que as três nações já iniciaram a sua utilização em modelos regulatórios.

Em fevereiro de 2021, a França lançou sua initiative bac-à-sable, um sandbox para projetos inovadores em Saúde que façam uso de dados pessoais. O projeto é acompanhado pela European Data Protection Authorities (DPA) e objetiva ajudar as organizações a implementar desde o início parâmetros de privacidade. Entre outras entidades a fomentar o modelo, a OCDE o ressaltou no relatório “State of Implementation of the OCDE AI Principles”, publicado em junho de 2021. “Ambientes controlados para experimentação e testes de IA facilitam a identificação oportuna de potenciais falhas técnicas e desafios de governança. Eles podem revelar possíveis preocupações públicas por meio de testes em condições quase do mundo real e fornecer uma avaliação de impacto da Tecnologia de IA em vários aspectos da vida das pessoas, como empregos, educação e meio ambiente. Os ‘regulatory sandboxes’ são uma forma de testes para aplicativos inovadores, podendo operar no ‘modo de inicialização’ pelo qual são implantados, avaliados e modificados, sendo, em seguida, ampliados, ou reduzidos, ou abandonados rapidamente”, expõe o documento de 93 páginas. Também no Oriente os projetos de sandbox avançam, como no Japão, que desde 2018 tem legislação e agência específica para cuidar dos “projetos-de-areia”. O Japanese Regulatory Sandbox está aberta a qualquer setor, como fintechs, healthtechs, mobilidade urbana, etc., sendo que mais de 15 projetos já foram aprovados.

As Agências de Saúde nacionais precisam prosseguir. Mesmo sendo sólidas, com bons resultados prestados e utilitaristas, precisam prosseguir e evoluir. Não é o mercado que cobra, é o futuro. Não é a iniciativa privada que precisa, é a iniciativa em rede, onde público e privado se interdependem. Estamos falando de “regulatory design” e não de fragilizar regras, ou transgredir princípios. Agências Reguladoras precisam ousar. A escritora, educadora e designer norte-americana Debbie Millman, descreve em seu livro “Look Both Ways” (Olhe para os dois Lados) o momento ideal para fazer as coisas mudarem: “Se você imaginar menos, menor será o que, sem dúvida, merece. Faça o que você precisa fazer, e não pare. Trabalhe tão duro quanto você puder, imagine imensidões, elas não comprometem, e não perca tempo. Começa agora. Não 20 anos a partir de agora, não daqui a duas semanas. Agora”.

Guilherme S. Hummel
Scientific Coordinator Hospitalar Hub
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)