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Anura MagicMirror: diagnóstico por vídeo-imagem em 30 segundos. Ficção ou revolução?

Article-Anura MagicMirror: diagnóstico por vídeo-imagem em 30 segundos. Ficção ou revolução?

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Um self para detecção de riscos na saúde

O verbete “ficção” deriva de ‘fictio’ (do latim ‘fingere’), que significa "moldar, representar ou fingir”. O semiólogo e escritor Umberto Eco (1932-2016) entendia essa expressão de forma muito particular. Para ele, a ficção não se limita a imitar a realidade, mas a construir um novo mundo dualístico que habita simultaneamente o real e o imaginário. “A ficção tanto espelha quanto molda a nossa compreensão da realidade, destacando-se por sua capacidade de influenciar e até prenunciar aspectos dela”, explica ele. Para Eco, o “poder da ficção” reside em se enraizar na consciência, fundindo as narrativas de uma realidade já vivida e outra por viver. "A ficção pode ser a mentira que nos diz a verdade", explicou o prodigioso escritor italiano.

Podemos ver exemplos dessa dualidade (espelhar & moldar) nas exposições mundiais de Tecnologia ao longo deste século. O poder da ficção esteve, por exemplo, nas filas de acesso aos estandes da CES 2024 (Consumer Electronics Show). Considerada o maior balcão expositivo de tecnologia do mundo, ela recebeu em janeiro perto de 130 mil visitantes que se acotovelavam em Las Vegas para entrar em seus 4 mil estandes (150 países). É provável que muitos visitantes saíram do evento sem saber ao certo onde terminava a ficção e começava uma revolução. A imprensa e os fund-traders garimpavam pelos corredores em busca de “diamantes-disruptivos”, quase todos agora embalados em nuvens de inteligência artificial

Mas, talvez, a pérola da feira não estava no barracão das bigtechs, mas no pavilhão Norte, no despercebido estande 8917, só visível pela longa fila de visitantes que podiam esperar mais de uma hora para conhecer o seu “espelho-mágico”. O estande da canadense NuraLogix Corporation roubou a cena, pelo menos para o mercado que consome e fornece serviços de saúde. O “Anura MagicMirror”, seu principal produto, roubou as manchetes: um espelho de mesa (21,5’), com câmera integrada e software de IA, que escaneia o rosto de uma pessoa, gerando em 30 segundos um report de sinais vitais, riscos metabólicos e insights sobre saúde mental. Confira no vídeo.

Pura ficção, diriam alguns. Uma revolução, cochichavam outros. Embora não tenha nenhuma tecnologia inédita, a fusão de várias delas e a performance do Anura é um deslumbre, principalmente para quem aposta em Telehealth e nas ferramentas remotas de Triagem. Alimentado pela plataforma algorítmica da empresa (Affective Ai) e baseado em sua própria nuvem (DeepAffex), o Anura MagicMirror foi referenciado logo no primeiro dia, recebendo o “CES 2024 Innovation Award Honoree for Digital Health”, premiação que elege as inovações singulares da feira. A solução é projetada para realizar de qualquer lugar e a qualquer hora “avaliações rápidas de saúde física e mental”. Ou seja, qualquer um poderá acessar o “Anura Web”, deixar-se filmar por sua varredura algorítmica e receber automaticamente prospecções sanitárias, sem exigir múltiplas entradas manuais.

Em sua obra "Os Limites da Interpretação", Eco escreve: “os textos não significam o que o autor quis dizer, mas o que o destinatário consegue neles decifrar". No fundo, o Anura MagicMirror quer dizer algo extremamente simples: o que me revela o fluxo sanguíneo de sua face? Ele analisa as informações de fluxo por meio da tecnologia TOI (Transdermal Optical Imaging), um método detectivo de fluxo sanguíneo facial, que afere a concentração de hemoglobina por meio de uma câmera de vídeo digital. Trata-se de uma forma de fotopletismografia remota (rPPG)™, uma técnica óptica, não invasiva, que monitora as variações de volume sanguíneo periférico. O rPPG observa automaticamente o rosto da pessoa, identificando as principais regiões de interesse e as informações de seu fluxo sanguíneo.

Os dados são enviados para a plataforma em nuvem, DeepAffex™, que usa algoritmos avançados (IA) para processamento e cálculo de mais de 100 parâmetros de saúde, como: tensão arterial; carga de esforço cardíaco; pulsação; frequência respiratória; frequência cardíaca irregular; variabilidade da frequência cardíaca; IMC; relação cintura/estatura; idade da pele facial; avaliações de risco metabólico; avaliação de risco de diabete T2; risco de doença cardiovascular (10 anos); risco de ataque cardíaco (10 anos); risco de AVC (10 anos); risco de hipertensão; hipercolesterolemia; hipertrigliceridemia; doença hepática gordurosa; glicemia de jejum matinal; hemoglobina A1C; estresse mental; depressão e ansiedade com risco à saúde; etc. Sua algoritmização não está totalmente selada por pesquisas científicas, mas a engenharia de dados da NuraLogix aparece atualmente em 11 publicações revisadas por pares, com três publicações adicionais em andamento, cobrindo tópicos como hipertensão, risco cardiovascular, diabete e doença hepática gordurosa.

O alvo mais ‘monetizável’ da empresa é o Anura™Telehealth, uma plataforma baseada em desktop que realiza medições de sinais vitais durante uma videoconsulta. A “medição contínua em tempo real” pode sim ser mais uma revolução na remotelização de serviços médicos (“Take a selfie, know your healthie!”, é o mote promocional da empresa). Confira aqui. Embora muitas dessas tecnologias ainda estejam em fase experimental, elas ganharão musculatura e muito mais experimentação a partir de 2024, catapultadas pelas GenAIs. Segundo a empresa, o Affective Ai™ é uma “intersecção entre a Computação Afetiva e a Inteligência Artificial, com capacidade de reconhecer, medir, prever e simular os afetos humanos que assumem a forma de estados fisiológicos e psicológicos, sendo identificados por modelos treinados em IA”. Quiçá uma afirmação um tanto quanto precipitada e prematura para um produto que, como a própria empresa ressalta, ainda está em fase experimental.

Por outro lado, a NuraLogix não deixa de mostrar suas credenciais. O estudo “Smartphone-Based Blood Pressure Measurement Using Transdermal Optical Imaging Technology”, publicado em 2019, foi um dos pontos de partida da empresa. Em 2020, ela publicou outro estudo, “Preliminary assessment of video-based blood pressure measurement according to ANSI/AAMI/ISSO: Anura smartphone app with transdermal optimal imaging technology”, já introduzindo o brand Anura para sequenciar a pesquisa com premissas de patente. Nesse trabalho, os pesquisadores da empresa estabelecem que “o dispositivo pode aferir a pressão arterial (PA) a qualquer hora e em qualquer lugar, sem manguitos ou equipamentos especiais, a partir de vídeos do rosto. O estudo avaliou sua precisão em estreita conformidade com os padrões da ANSI, AAMI e ISO para dispositivos voltados a medição de PA”.

Outra pesquisa de 2021 (“Importance of General adiposity, visceral adiposity and vital signs in predicting blood biomarkers using machine learning”), publicada pela NHI (National Library of Medicine), também foi usada pela empresa para seus ensaios. O estudo utiliza algoritmos avançados de machine learning para criar modelos computacionais que possam prever biomarcadores sanguíneos (células, lipídios, fatores metabólicos), age-biomarkers (cronômicos), adiposidade geral (IMC), adiposidade visceral (gordura acumulada ao redor dos órgãos internos) e sinais vitais (pressão arterial sistólica, pressão arterial diastólica, pulso). Ao final, o estudo conclui: “nossos achados caracterizam relações até então desconhecidas entre esses preditores e biomarcadores sanguíneos; em muitos casos, a importância de certas características diferiu da contribuição esperada com base em técnicas simplistas de modelagem linear. Assim, este trabalho pode levar à formação de novas hipóteses para explicar sistemas biológicos complexos e informar a criação de modelos preditivos com potenciais aplicações clínicas”.

A empresa também disponibiliza vários outros estudos usados para sedimentar as conclusões do Anura MagicMirror, como segue: (1) “A Smartphone-based Identification of Critical Levels of Glycated Hemoglobin A1c using Transdermal Optical Imaging” (identificação baseada em smartphone para níveis críticos de hemoglobina); (2) “Measuring Blood Pressure: from Cuff to Smartphone” (aferição de pressão arterial por smartphone); (3) “Transdermal optical Imaging revealed diferent spatiotemporal patterns of facial cardiovascular activities” (imagem óptica transdérmica revelando diferentes padrões espaço-temporais de atividades cardiovasculares faciais); (4) “Transdermal Optical Imaging Reveal Basal Stress via Heart Rate Variability Analysis: A Novel Methodology Comparable to Electrocardiography” (imagens ópticas transdérmicas revelando estresse basal por meio da variabilidade de frequência cardíaca). Além disso, a empresa detém as patentes: US 10.694.988 B2 - Sistema e Método para Detecção do Estado Fisiológico; US 10.376.192 B2 - Sistema e método para determinação da pressão arterial sem contato; e US 10.117.588 B2 - Sistema e método para rastreamento de frequência cardíaca baseado em câmera.

A solução funciona com a maioria das plataformas digitais, como iOS, Android, Windows, Linux, macOS, Web, Smart Mirrors, Serviços de Mensageria, etc., embora a empresa explique que, no curto prazo, ela não será comercializada para uso doméstico. Sua diretoria também salienta que o Anura não é uma ferramenta de diagnóstico, mas de “conscientização”. Seja lá o que isso signifique, a empresa sabe que não escapará do crivo seletivo do mercado e da ciência, principalmente dos provedores de Telehealth, ávidos por devices inclusivos, que adicionem valor a consulta médica à distância (na mesma CES, foi apresentado outro ‘espelho-inteligente’ - Bmind Smart Mirror – voltado ao “bem-estar mental, fornecendo recomendações personalizadas, como sessões de fototerapia, meditação guiada, etc.”).

"A realidade é apenas uma das muitas ficções que habitam o mundo”, explicou o autor de “O Nome da Rosa”. Nesse sentido, é importante notar a volta da “opulência divulgatória” de eventos internacionais como o CES, que geram, em horas, debates globais efervescentes e esclarecedores sobre as soluções lá apresentadas. Em menos de dois dias, a NuraLogix estava nos principais canais midiáticos mundiais, aparecendo em mais de 400 meios informativos que acessaram presencialmente o evento de Las Vegas (exemplo: o Anura foi apresentado no dia 08, no dia 09, a Folha de São Paulo publicou uma página com a manchete “Espelho que avalia risco de doença é atração na CES”). Após a pandemia, expor em grandes eventos internacionais volta a ser uma forma vertiginosa para divulgar e debater as inovações. De acordo com o Buzz Radar, desde o início do Media Day, a CES obteve com o Anura 252 mil menções, com um potencial de atingir 2,07 bilhões de pessoas em todo o mundo. Em poucos dias, a NuraLogix deixou de ser uma empresa de milhão para sentar à mesa dos bilionários (queria ser poeta, mas amanheceu poema).

A TOI não é uma tecnologia nova, embora ainda seja experimental. Humanos enfrentam situações estressantes todos os dias no trabalho, em casa, no lazer ou nas cotidianidades em geral. Quando vivenciado em níveis elevados (ou por um longo período de tempo), essas ‘condições de estresse’ podem levar a doenças cardiovasculares, disfunções cognitivas e distúrbios psicológicos. Sua avaliação depende da análise de dados psicométricos (por exemplo, questionários de autorrelato), e/ou biométricos (eletrocardiografia, por exemplo). Dados psicométricos dependem fortemente de reflexões subjetivas de eventos e condições. Já os dados biométricos podem fornecer uma avaliação objetiva da atividade fisiológica, no entanto, são frequentemente obtidos através de instrumentos que requerem a fixação de elétrodos ou sensores no corpo. Ou seja, pode haver inconveniências em ambos os modelos de avaliação, sinalizando que ainda temos dificuldades de monitorar os níveis de estresse de forma fiável, confortável e conveniente.

Em 2018, o estudo “Transdermal Optical Imaging Reveal Basal Stress via Heart Rate Variability Analysis: A Novel Methodology Comparable to Electrocardiography” examinou a validade da tecnologia TOI para avaliação do estresse basal. Ou seja: “aferição remota das alterações do fluxo sanguíneo facial” captadas por meio de uma câmera de vídeo convencional (digital). Cento e trinta e seis adultos saudáveis ​​participaram do estudo, sendo seus dados-TOI comparados aos dados de pulso coletados pelo sistema BIOPAC (ECG100C). O estudo identificou que “as medidas TOI de frequência cardíaca e variabilidade da frequência cardíaca (VFC) corresponderam fortemente às obtidas pelo BIOPAC”. Essa descoberta mostrou que a tecnologia TOI é um método viável para monitorar a frequência cardíaca e a VFC, não apenas com precisão, mas também de forma conveniente (sem contato e remotamente). Além disso, as medidas de VFC obtidas via TOI servem como um índice válido de estresse basal. Estava aberta a porta para o desenvolvimento de dispositivos ancorados na TOI, como o Anura e outros.

Como funcionam as plataformas TOI? Nunca devemos esquecer que a pele humana é translúcida, sendo penetrada pela luz. À medida que a luz atravessa o tecido epidérmico, ela é refletida e pode ser capturada por uma câmera digital. A TOI extrai dados do fluxo sanguíneo facial (da imagem) por meio de cromóforos, que são as partes de uma molécula que lhe conferem cor (distinta). Obviamente, os principais cromóforos utilizados na TOI são a hemoglobina e a melanina, conferindo à luz refletida uma “assinatura de cor exclusiva”, que é capturada pela câmera. À medida que os níveis de estresse e humor mudam, a frequência cardíaca também muda, permitindo que a TOI avalie diversas condições fisiológicas e psicológicas. Ocorre que a imagem óptica transdérmica é utilizada em conjunto com aprendizado de máquina (IA), que extrai informações do fluxo sanguíneo com alta qualidade a partir do vídeo facial. Assim, essa informação é algoritmizada minuciosamente para estimar com boa precisão os padrões cardiovasculares.

Outras soluções já existem utilizando essa mesma tecnologia, como o aplicativo Zyto Link, da norte-americana Zyto, ou o MaNaDr AI FaceScan, da MaNaDr (Singapura), ou ainda o Re.doctor. No fundo, o mercado TOI vai se expandir velozmente devido à expansão de usabilidade das GenAIs, como o ChatGPT 4, que são capazes de comparar imagens transdérmicas em segundos. Como escreveu Eco: “a criatividade é anárquica, capitalista e necessariamente darwiniana-evolucionista”. Assim, se as soluções que estão aparecendo hoje cumprem com aquilo que prometem, só o tempo dirá. Mas não precisaremos de muito tempo para saber: dúzias de outras companhias caminharão na mesma direção, preparando lançamentos de diagnóstico e triagem remotos utilizando TOI. Desse modo, se porventura a ficção emergir e deixar claro a baixa assertividade dessas primeiras aplicações, a revolução não vai submergir: em poucos anos, ou meses, a identificação remota de riscos patológicos será habitual e popular. No meio de tudo isso, claro, haverá muito alvoroço, muita discussão, cartas exigindo regulação e posições médicas contrárias ou favoráveis às plataformas TOI. Mas é assim mesmo que as coisas da Saúde acontecem neste século: semelhante a estar na areia escaldante sem sentir os pés queimando por estar correndo em direção ao mar.

 

Guilherme S. Hummel

Scientific Coordinator Hospitalar Hub

Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)