faz parte da divisão Informa Markets da Informa PLC

Este site é operado por uma empresa ou empresas de propriedade da Informa PLC e todos os direitos autorais residem com eles. A sede da Informa PLC é 5 Howick Place, Londres SW1P 1WG. Registrado na Inglaterra e no País de Gales. Número 8860726.

Computação Cognitiva: médicos podem ser “eternos” enquanto durem

Article-Computação Cognitiva: médicos podem ser “eternos” enquanto durem

cognição.png
Perda da cognição médica pode ser compensada

Como os poetas, médicos deveriam ser “eternos”. Precisariam ser ‘infinitos’ enquanto houvesse habilidade. Nunca a civilização precisou tanto dos médicos como no presente. Nunca e com tal zelo foi tão necessário o seu riso. E quando mais tarde nos procure a morte, angústia de quem vive, pudéssemos sempre louvar o seu canto. E mesmo em face do maior encanto, nos encantasse mais o seu pensamento. Poetas são imortais, médicos também deveriam sê-lo.

O que decorre quando um cirurgião vai perdendo suas habilidades cognitivas? Estudos mostram que a RVIP (latência média em fração de segundos para o cirurgião dar uma resposta correta) aumenta com a idade, diminuindo o seu poder de acerto. Da mesma forma, ficam prejudicados com o incremento da idade a RTI (velocidade de resposta do profissional a cinco escolhas) e o PAL (número de tentativas para aprender localizações corretas, com vários estágios de complexidade). O declínio cognitivo relacionado à idade está demostrado em vários testes e análises computacionais, ainda que haja pouquíssimos países com uma “relação regulatória entre essa redução cognitiva e qualquer tipo de jubilação compulsória”. O motivo é simples: não podemos perdê-los.

Mas, poderia a Inteligência Artificial (IA) compensar essa perda? Poderiam algoritmos ou redes neurais neutralizar o déficit cognitivo? É provável que não. Mas IA propicia e instrumentaliza a “Computação Cognitiva” (CC), que, por sua vez, só existe para reabilitar ou propelir nossa cognição. Médicos longevos serão perenes e atuantes em suas práticas sempre que puderem fazer uso da “cognição artificial”. Serão “eternos enquanto durem” mesmo diante da perda cognitiva. Não que algum software vá pensar por eles, mas este vai estender a sua “chama cognitiva” por meio do envolvimento sintético do médico com máquinas e sistemas de cognição artificial. Com isso, a expectativa de vida funcional e operacional de um médico pode ganhar em média uma década ou mais.

No estudo “The Philosophy of Information - an Introduction”, realizado por vários pesquisadores e publicado em parceria com a Duke University, várias são as definições de cognição, entre elas: “Cognição refere-se aos mecanismos pelos quais os animais adquirem, processam, armazenam e agem sobre as informações do ambiente. Estes incluem percepção, aprendizado, memória e tomada de decisão”, explicou a consagrada Sara J. Shettleworth, autora de inúmeras obras entre elas “Cognition, Evolution, and Behavior” (2009). Já o biólogo norte-americano James A. Shapiro clarificou de forma mais natural: “O termo cognitivo refere-se a processos de aquisição e organização de entradas sensoriais que possam servir como guias para uma ação bem-sucedida. A abordagem cognitiva enfatiza o papel da coleta de informações na regulação da função celular”. Uma sólida corrente de neurocientistas, pesquisadores e psicólogos admite que o “conceito de informação” é valoroso na investigação das “arquiteturas cognitivas”, sendo inseparáveis as duas disciplinas. Escolha qualquer definição para cognição, mas ela sempre estará diretamente relacionada as percepções que temos do ambiente externo para construir nossas certezas internas (mentais).  

Mas qual a diferença entre Inteligência Artificial e Computação Cognitiva? À medida que a popularidade de IA cresce, os jargões que a cercam se fartam de espalhar confusões. Expressões como Machine Learning (ML), Deep Learning (DL), Voice Recognition (VR), Cognitive Computing (CC), Neural Networks (NN), etc. entram pelos poros do ecossistema de saúde espargindo definições como nuvens de gafanhotos. IA é uma base algorítmica treinada para determinadas tarefas, e, como os humanos, aprende com o ambiente. CC são sistemas computacionais desenvolvidos com as mesmas ferramentas que compõe IA, mas são orientados fundamentalmente à tomada inteligente de decisões. Cognitive Computing adiciona o “elemento humano” aos resultados. IA tritura dados-estruturados, aprendendo com eles e fornecendo automação a partir deles (algoritmização). CC utiliza essas mesmas saídas de IA, examina suas nuances e complementa seus insights com elementos da cognição humana, como memória, percepção, imaginação, atenção, pensamento, raciocínio, emoção, etc. Como a maioria dos dados coletados por pessoas e entidades está na forma “não-estruturada”, torna-se imperativo o uso das plataformas de computação cognitiva, que são capazes de prover conhecimento mesmo com “dados sem qualquer estrutura formal”.

Quando o médico utiliza no seu dia a dia uma aplicação de IA, como, por exemplo, uma ‘plataforma inteligente de imagiologia’, ele só conclui o diagnóstico quando infere no resultado do laudo suas habilidades cognitivas (experiência pretérita, análise do prontuário médico, conversa com familiares, avaliação junto a seus pares, notações farmacológicas, sinais vitais, pesquisa bibliográfica online, etc.). Uma plataforma de cognitive computing parte do mesmo ponto (laudo radiológico), mas ela infere uma enorme quantidade de informações não-estruturadas, baseadas na cognição humana, para entregar ao médico uma perspectiva diagnóstica muito mais completa, cabendo a ele tão somente a hipótese clínica mais apropriada. Assim, mesmo que o médico tenha uma mitigação de suas funções cognitivas (por qualquer motivo) a CC pode apoiá-lo, assegurando componentes cognitivos (pré-especificados) para reduzir as margens de erro.

Para melhor entender a sutil e relevante diferença entre IA e CC, vamos nos valer da analogia de duas aranhas diferentes, que se encontram num “ambiente de presa e predador”, cuja descrição se encontra no estudo acima citado. Portia é uma aranha-saltadora (portia-fimbriata) que está caçando uma aranha-teia, que chamaremos de Orba. A maioria das aranhas saltadoras tem uma visão incrivelmente boa, ao contrário de outras aranhas que se colocam em teias e que dependem principalmente dos sentidos do tato. Portia usa uma tática muito incomum e sofisticada para caçar Orba. A teia de Orba não é apenas sua casa (temporária) ou uma rede de captura; é uma extensão de seus órgãos e sentidos. Orba pode localizar e identificar vários objetos na teia com base na natureza das vibrações e na forma como estas se propagam ao longo dos fios da teia. Quando Portia escala a teia será detectada por Orba. O que é pior, Orba não se importaria em “almoçar” a própria Portia. Nessa caçada, ambas possuem estratégias claras. Portia inicia vibrações na rede-teia tentando controlar o comportamento de Orba. Ela caça muitos tipos de aranhas e não sabe ao certo quais sinais são percebidos por Orba. Sua sequência de vibrações é aleatória, estando sua atenção e observação completamente voltados à Orba. Se o comportamento da presa não for propício para uma caçada bem-sucedida (podendo levar à reversão na direção da caçada), Portia inicia novamente outras vibrações até que um sinal modificador de comportamento seja encontrado. O objetivo é fazer com que Orba chegue perto o suficiente para que Portia possa pular e “esfaquear” a oponente com suas presas venenosas”.

Cientistas e biólogos que estudam a ‘cognição das criaturas vivas’ sugerem que nessa caçada existem boas indicações das habilidades “cognitivas dos seres”, como: aprendizado, representação, atenção, memória, busca estratégica de objetivos remotos, etc. Ainda que seja arriscado estabelecer conexões diretas entre os vários tipos de criaturas, é possível identificar que muitos dos blocos rudimentares da cognição estão também presentes nos seres humanos, que denominamos “habilidades cognitivas”.

Assim, Orba possui habilidades notáveis com seu minúsculo cérebro (400K a 600K neurônios), que pode discriminar um conjunto significativo de diferentes padrões vibracionais. Algumas dessas vibrações são moduladas pelos órgãos do sentido, outras pelo seu estado metabólico (fome, por exemplo). O conjunto de vibrações e padrões comportamentais gera um nível de abstração que organiza seu ambiente e permite que ela identifique objetos remotos. Portia, por sua vez, possui relações complexas entre o ambiente e seu organismo, mediadas pela estrutura de conexões neurais em seu cérebro. Este, ao reconhecer o “contexto de caça de uma aranha desconhecida”, gera vibrações aleatórias para “hackear” os mecanismos de controle neural de Orba. No processo, Portia concebe um nível de abstração voltado às propriedades de comportamento de Orba, descobrindo a “relação” entre as vibrações e o comportamento do tipo de aranha que Orba é. A relação identificada é “registrada” em novas conexões neurais, que conectam a padrões detectados por seus sensores. O resultado é o mecanismo cerebral de Portia, que “processa e integra” as informações em conjuntos distintos de comportamento.

Quando Orba percebe que os movimentos (vibratórios) são independentes (não foram gerados por ela mesma), ela “extrai informações” de uma fonte externa e usa esses “dados” para controlar o seu próprio comportamento. Por outro lado, quando Portia relaciona as “informações” comportamentais de Orba com suas próprias vibrações (carregadas de elementos cognitivos), consegue mapear como sua competidora pode ser controlada. Ou seja, Portia está “processando informações” e extraindo um conjunto de dados específicos sobre o perfil de Orba. Para esta, sua teia (parte de seu sistema sensorial) e tudo o que está dentro de seu cérebro é o seu “sistema cognitivo”. Tudo o que está fora desse contexto, ou seja, fora de seu cérebro e de sua malha de sensores vibracionais (teia), é apenas o seu “ambiente”.

Analogamente, podemos estabelecer que o (1) cérebro de Orba, (2) sua teia e (3) seu código de vibrações são operados tal qual uma plataforma de inteligência artificial. Por outro lado, Portia, com (1) seu potencial de comparar as vibrações de sua oponente, (2) confrontá-las com o que acontece no ambiente, (3) mapear seu comportamento sensorial e (4) gerar novos padrões cognitivos até identificar o protocolo da oponente, é o que demarca uma plataforma de computação cognitiva”.  Portia usa as mesmas ferramentas (IA) de Orba, mas é capaz de inserir no embate uma série de instrumentos cognitivos até descobrir (hackear) o protocolo de defesa de sua presa. Ela fará essa incursão vibratória quantas vezes for necessário até obter a vibração correta que enganará Orba e permitirá seu ataque. Orba opera com informações sensoriais estruturadas; e Portia vai além, sendo capaz de operar também com informações não-estruturadas, como, por exemplo, ‘tentativa e erro’.

Com base em revisões literárias, é possível dizer que a característica principal da Computação Cognitiva é “emular as atividades do cérebro humano, particularmente o córtex pré-frontal (parte pensante do cérebro), combinando atributos da ciência humana cognitiva ao mesmo tempo em que “funde” a inteligência natural com a inteligência artificial”. Softwares de computação cognitiva são capazes de avaliar uma linguagem natural e identificar as habilidades interpessoais. Por exemplo: o conteúdo de análises radiológicas, feedbacks orais de pacientes, e-mails explicativos sobre desconfortos, queixas gravadas (WhatsApp), prontuários em papel (não-estruturados), etc. é fornecido em linguagem natural e alguém dentro da organização tem de ler tudo para entender o que está acontecendo e, só depois, agir. Trata-se de uma operação extremamente dispendiosa, longa e frágil devido as inúmeras formas e erros de interpretação (uma avaliação banal no contexto “oral & escrita” pode, por exemplo, ter 17 critérios de satisfação, 32 emoções analisadas e 2 estados afetivos, representando um total de 1.173 palavras agrupadas para compreender o que está acontecendo). Ou seja, grosso modo a ‘computação cognitiva permite alojar um cérebro humano dentro do computador, ao mesmo tempo em que aloja um computador dentro de nosso cérebro’.

Médicos mais idosos são valiosos por seus muitos anos de experiência e pelas habilidades que desenvolveram ao longo do tempo de prática clínica. Continuam sendo vitais como força de trabalho, especialmente porque o mundo enfrenta uma escassez significativa de profissionais da saúde. Ao mesmo tempo, não são poucas as preocupações sobre déficits de desempenho entre médicos acima de 60 anos, muitos deles com comprometimento cognitivo. Cerca de 15% dos 1,1 milhão de médicos praticantes nos EUA têm mais de 65 anos. De acordo com estimativa, até 28% dos médicos norte-americanos com 70 ou mais anos têm comprometimento cognitivo leve. Estudo realizado entre 2016 e 2019 pelo Yale New Haven Hospital, testou 141 profissionais de saúde com 70 ou mais anos. A maioria era de médicos (125), sendo os demais dentistas, psicólogos, etc. O hospital descobriu que 12,7% deles tinham déficits cognitivos que poderiam prejudicar o seu desempenho no trabalho (voluntariamente eles realizaram transição para funções de supervisão). Um Programa de Avaliação realizado em Ontário, Canadá, constatou que 22% dos médicos com mais de 75 anos “tinha deficiências graves em sua prática clínica”, em comparação com 16% do grupo entre 50 e 74 anos e 9% dos médicos com 49 anos ou menos.

Outro estudo canadense (“Approaching the Issue of the Aging Physician Population”) descobriu que, em comparação com médicos na faixa etária de 30 a 60 anos, profissionais com mais de 65 anos apresentavam taxas mais elevadas de notificação oficial de problemas físicos, declínio cognitivo, manutenção inadequada de registros, prescrição incorreta, comportamento perturbado e fornecimento aos pacientes de tratamento abaixo do padrão. O próprio American College of Surgeons emitiu em 2016 um termo, denominado “Declaração sobre o Envelhecimento do Cirurgião”, instando os cirurgiões a “avaliar voluntariamente sua função neurocognitiva usando ferramentas on-line”. Outro estudo, “Physiological correlates of cognitive load in laparoscopic surgery”, publicado em 2020 por pesquisadores da Nottingham Trent University (UK), mostrou claramente essa realidade no escopo das cirurgias laparoscópicas, um dos eixos mais utilizados na medicina moderna.

“Computação Cognitiva é o uso de modelos informáticos para simular processos mentais humanos em situações complexas, onde as respostas podem ser ambíguas ou incertas”. CC se sobrepõe à IA navegando em dados não-estruturados, como são 90% de todas as informações que circulam no bioma da Saúde, ou quase tudo o que circula em linguagem oral ou escrita na civilização moderna. Como explicou Dharmendra Modha, um dos líderes de computação cognitiva da IBM Research: “A computação cognitiva vai muito além da inteligência artificial ou da interação humano-computador como a conhecemos. Ela explora os conceitos de percepção, memória, atenção, linguagem, inteligência e consciência. Normalmente, em IA, cria-se um algoritmo para resolver um determinado problema. A computação cognitiva emula um “algoritmo universal” para o cérebro, capaz de resolver uma vasta gama de problemas”. Nesse sentido, CC são sistemas probabilísticos, o que significa que são projetados para se adaptar e dar sentido à complexidade e imprevisibilidade da informação não-estruturada. Eles podem 'ler' texto, 'ver' imagens e 'ouvir' a fala natural, podendo interpretar essas informações e oferecer sugestões elucidativas sobre o que significam. Nesse sentido, a cognição artificial é “uma disciplina que une neurociência, neurobiologia, psicologia cognitiva e inteligência artificial”.

Para o filósofo Espinosa (1632-1677), a mente não pode ser destruída juntamente com o corpo, porque da mesma forma que “ela é a ideia de corpo”, o pensamento infinito contém a ideia de “promoção da mente humana”. A noção de imortalidade de Espinosa tem tudo a ver com a conservação da informação. Ele inclusive chega a escrever: “A mente não pode ser totalmente destruída com a morte do corpo, mas algo dela permanece e é eterno”. Médicos e poetas sempre serão eternos, mesmo que morram. Suas ideias, experiências, práticas, descobertas e conquistas serão cada vez mais armazenadas e protegidas em plataformas computacionais cognitivas. Seu legado será usado pela ciência para corrigir rumos, alterar propostas e melhorar a qualidade da vida humana. Já que falamos de poetas, que tal terminar com o inglês William Blake (1757-1827), num fragmento extraído de sua obra ‘Auguries of Innocence’: “Ver todo o Mundo num grão, e um Céu num ramo que enflora, é ter o infinito na palma da mão, e a eternidade numa única hora”.

Guilherme S. Hummel

Scientific Coordinator Hospitalar Hub

Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)