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Hospital at Home (HaH): cuidado clínico agudo se move para quarto residencial

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Desospitalização gradual e irrestrita

No livro “In The Patient Will See You Now”, publicado em 2015, Eric Topol nomeou um capítulo com o título “The Edifice Complex”. Nele, o mais importante pensador vivo sobre transformação médica digital, escreveu: “Os hospitais, como os conhecemos hoje, acabarão sendo extintos”. Na visão dele, pacientes que não necessitarem de uma unidade de cuidados intensivos, ou de uma avaliação dos serviços emergenciais, serão tratados de forma mais segura e econômica no conforto e conveniência de sua própria casa. A Covid-19 só deu um empurrão a mais, aumentando a velocidade e assertividade dos “cuidados hospitalares residenciais”. Na verdade, o século XX sedimentou a ideia de que a “morte saiu de casa e foi para as organizações hospitalares”. Hoje, morrem mais indivíduos em hospitais do que em qualquer outro lugar. Nos EUA, perto de um quarto de todos os pacientes hospitalizados são tratados em unidades de cuidados intensivos antes de morrerem.

No mês de fevereiro de 2024, o The King's Fund, talvez a mais importante organização de caridade independente para melhoria da saúde na Inglaterra, publicou um relatório (“Making care closer to home a reality”) que disseca de forma íntima (o Case alvo é o próprio sistema britânico de saúde) as realidades do modelo HaH (Hospital at Home) no Reino Unido. Trata-se de uma peça extremamente importante para entender a performance de uma inevitável transformação nos cuidados de saúde deste século: cuidados agudos domiciliares. O documento revela os bastidores do modelo e como ele pode e deve revolucionar o bioma saúde, embora existam fragilidades notáveis no NHS para essa transformação.

"Invente uma costa onde o mar seja você" (poeta Gonzalo Rojas). Quando a executiva de marketing Helen foi ao pronto-socorro de um dos melhores hospitais de sua cidade (complicação relacionada à sua gravidez), não estava preparada para o que aconteceu. Chegou às 14h, mas só viu alguém da obstetrícia à meia-noite. Após um exame, os médicos marcaram um procedimento para ela no dia seguinte, mas não havia leito disponível. “Acabei passando a noite numa antessala improvisada no pronto-socorro, com uma lona plástica me separando do resto das pessoas que esperavam por atendimento”, disse ela. Não há culpados ou inocentes, só vítimas. Hospitais, em qualquer metrópole mundial, como no Brasil, são reféns do “circunstancialismo”, ou seja, padecem da ‘conjunção extemporânea’ de uma grande demanda para uma oferta de serviços aquém do necessário. Helen achou que estava perto da costa. Não estava.

O estudo “Public Perspectives on Boarding in the Emergency Department”, publicado pelo American College of Emergency Physicians em outubro/2023, mostrou que 44% dos pacientes passaram por longas esperas nos serviços de urgência, com 16% esperando 13 ou mais horas antes de serem internados, ou transferidos. Quase 50% dos adultos entrevistados disseram que atrasariam o atendimento de emergência se soubessem que poderiam enfrentar uma espera prolongada por leito. Esses estudos não são feitos no SUS ou na Saúde Suplementar, e se forem não vêm a público.

O atendimento hospitalar é o padrão de cuidado no Brasil, assim como em vários outros países, inclusive nos EUA. Mas ele torna-se cada vez mais caro, insuficiente (tempos de espera), inseguro, desconfortável e sujeito ao perfil do médico ou da Seguradora, que normalmente “escolhem” o hospital que lhes convém. Nesse sentido, cuidados residenciais emergem novamente como saída para descomprimir as Cadeias de Saúde. A cada década, eles recebem neologismos novos, agora são conhecidos como “Hospital at Home (HaH)”. A eficácia e a efetividade desse modelo dependem de inúmeros fatores, alguns controláveis e outros sem qualquer possibilidade de controle. HaH é um serviço clínico agudo realizado domiciliarmente, utilizando profissionais de saúde, equipamentos, tecnologias, medicamentos e habilidades normalmente fornecidas em hospitais”. Assim, ele substitui o atendimento hospitalar de pacientes agudos pelo atendimento residencial.

HaH não é só um atendimento ambulatorial, ou apenas um programa de prevenção hospitalar, ou uma plataforma comunitária para gestão de doenças crônicas, ou algum tipo de atendimento exclusivamente virtual e remoto. Da mesma forma, não pode ser confundido com cuidados domiciliares primários (home-care), ou assistência médica domiciliar a longevos. Todas essas funções podem estar aleatórias ou ocasionalmente dentro do contexto de HaH, mas não definem por si o modelo.

Seu alcance envolve: (1) acuidade e complexidade voltados a condição do paciente; (2) serviços diagnósticos avançados (endoscopia, radiologia, ecografia, etc.) a beira do leito (POCUS); (3) acesso a fluidos intravenosos, terapias, oxigênio, etc; (4) contribuição diária de equipe multidisciplinar, com suporte telemédico; (5) liderança especializada e treinada em atenção secundária ou terciária; (6) aplicabilidade contínua de critérios de inclusão e exclusão; (7) intervenções limitadas ao curto prazo, em geral, de 1 a 15 dias; (8) aceitação pela entidade que pacientes HaH devem ser tratados como internados hospitalares, embora tratados dentro da própria casa; (9) envolvimento ativo da família no processo de cuidado; (10) utilização de critérios e protocolos clínicos claramente definidos, tanto para procedimentos quanto para segurança do paciente.

Como explica Bruno Porto, sócio e líder em Saúde da PwC Brasil: “O hospital do futuro deverá ser uma rede de ativos de entrega física e virtual conectada por um único sistema com recursos digitais, permitindo a prestação de atendimento em comunidades, em casa, empresas ou em estabelecimentos, de acordo com a necessidade dos médicos e a preferência dos pacientes. Ele será composto por um ecossistema conectado, capaz de oferecer atendimento de qualidade além de suas fronteiras tradicionais” (veja abaixo imagem da PwC Brasil de seu report “Futuro da Saúde”).

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Vale ressalta que a "agudez de uma doença" refere-se à intensidade, severidade e rapidez com que os sintomas se manifestam, em contraste com doenças crônicas, que geralmente se desenvolvem gradualmente e são de longa duração. Em janeiro/2024, o Annals of Internal Medicine Journal publicou um paper intitulado "Acute Hospital Care at Home in the United States: The Early National Experience", mostrando que, globalmente, o HaH é um modelo importante e eficaz para gerir doenças agudas, incluindo entre pacientes socialmente vulneráveis e clinicamente complexos (o estudo envolveu mais de 300 hospitais em 37 estados norte-americanos). "Por centenas de anos, desde o início dos primeiros sistemas de saúde, dissemos aos pacientes para se dirigirem a um hospital objetivando receber cuidados médicos agudos. Mas nos últimos 40 anos, está havendo um movimento global para trazer o cuidado de volta para casa. O atendimento hospitalar domiciliar parece cada vez mais seguro e de alta qualidade, principalmente a partir da última década. Você vive mais, é readmitido com menos frequência e tem menos eventos adversos. Se as pessoas tivessem a oportunidade de dar isso à mãe, ao pai, ao irmão ou à irmã... deveriam", explica o médico David Michael Levine, diretor clínico de pesquisa do Mass General Brigham's Healthcare at Home (Boston) e um dos líderes do estudo. 

No Reino Unido, o Hospital at Home surgiu operacionalmente em maio de 2020 no Hertfordshire Community NHS Trust, alcançando hoje serviços como: monitoramento à distância, verificação de sinais vitais, aplicação de antibióticos intravenosos/orais para infecções agudas, tratamento de infecções urinárias, controle de celulite, tratamento a DPOC, testes de eletrocardiograma (ECG) e cuidados paliativos especializados para pacientes em fim da vida. Dados do NHS Digital mostram que 8.586 pacientes foram tratados em regime de HaH em dezembro de 2023, contra 7.886 em novembro. A meta do NHS England era atingir 10.000 leitos virtuais em 2024, mas em setembro/2023 o objetivo já tinha sido superado. 

"Há uma série de razões pelas quais o atendimento hospitalar é melhor em casa. O processo de alta é mais tranquilo, pois ensinamos aos pacientes como se cuidarem em casa. Além disso, o corpo clínico tem maior capacidade de educar e atuar sobre os determinantes sociais de saúde, que alcançam de maneira radical o domicílio. Por exemplo, podemos discutir a dieta de um paciente na sua cozinha ou aconselhá-los quando vemos seus armários vazios", explica Levine. "Você desistiria da Amazon amanhã e voltaria para as lojas de departamento?", pergunta Michael Maniaci, médico e líder do programa de HaH da Mayo Clinic. É simples, completa ele: "O gênio saiu da caixa".

Mas é nos EUA que o modelo começa a mostrar sua potência. No país dos grandes hospitais, o HaH vem crescendo de forma exponencial nos últimos anos, muito devido aos avanços tecnológicos e as mudanças regulatórias. Mary Conrad, por exemplo, ‘montou um hospital em sua casa’ (Illinois): um tablet touchscreen, um suporte intravenoso (pole) e uma caixa de suprimentos médicos. Sua filha, Valerie (36 anos), com síndrome de Down, senta no sofá da sala de sua pequena casa, transformada agora em “quarto hospitalar”. Enfermeiros monitoraram Valerie remotamente (24x7), localizados em um centro digital de comando a 12 quilômetros de distância. Trata-se de um programa HaH da OSF HealthCare (serviço integrado de saúde com 16 hospitais, empregando 23 mil profissionais de saúde). É hoje o maior Serviço de HaH do estado de Illinois, atendendo 400 pacientes em 26 condições clínicas.

A rede hospitalar Atrium Health (Carolina do Norte), com mais de 70 mil funcionários, também passou a adotar o HaH depois da pandemia. Foi a única forma encontrada para resolver os problemas de excesso de pacientes. Em média, monitora cerca de 50 pacientes por dia em suas “instalações-hospitalares-residenciais”, projetando atender mais de 200 em 2025. No total, o programa já atendeu cerca de 8 mil pacientes, economizando cerca de 30 mil leitos de internação. As taxas de readmissão são mais baixas do que a população internada, enquanto as pontuações de satisfação dos pacientes são mais altas.

Nos mesmo moldes, o Massachusetts General Brigham atende cerca 33 pacientes/dia, a Mayo Clinic (Minnesota) atende perto de 30 pacientes/dia, a Kaiser Permanente (California) monitora 23 pacientes/dia, o Mount Sinai Health System (New York City) 20 paciente/dia,  e assim por diante. Praticamente todas as grandes plantas hospitalares dos EUA atuam com HaH, crescendo o atendimento de forma rápida. Na grande maioria dos casos 100% do atendimento é virtual. Sarah Schenck, diretora executiva do Centro de Saúde Virtual da ChristianaCare (três hospitais, contabilizando 1200 leitos), que atende em HaH cerca de 13 pacientes/dia, explica: "É muito importante que nosso sistema e outros sistemas passem a construir infraestrutura digital para permitir esse tipo de atendimento domiciliar. Não se trata mais de construir novos prédios. O lar é o novo local de atendimento agudo neste século".

Nos EUA, pacientes ainda ficam amontoados nos corredores hospitalares aguardando uma “brecha” no sistema. São milhões deles esperando por leitos que não existem. 97% dos médicos socorristas norte-americanos disseram que o tempo de embarque dos pacientes é sempre superior a 24 horas, sendo que 28% deles informaram que os pacientes são forçados a permanecer no pronto-socorro por mais de duas semanas antes de conseguirem um leito. (fonte: American College of Emergency Physicians). Existem explicações para o crescimento notável do modelo de “Hospital sem Paredes” nos últimos meses, tais como: (1) a colossal oferta de tecnologias de telemonitoramento (telehealth); (2) os serviços em banda 5G; (3) o acelerado crescimento das GenAIs, que desde 2022 dão mostras das possibilidades de serem usadas como assistentes (copiloto) tanto para pacientes quanto para profissionais de saúde; (4) a expansão da abordagem patient-centered; (5) o substancial crescimento da indústria de gadgets para saúde; e (6) os novos modelos de reembolso para HaH. Por outro lado, cresce a adesão dos pacientes ao modelo. O estudoPatients' and caregivers' perceptions of the quality of hospital-at-home service: A scoping review”, publicado em 2023, mostra que “o serviço de HaH é percebido como excelente por pacientes e cuidadores”

O modelo Hospital at Home é uma mudança de paradigma na forma de administrar cuidados agudos. O desenvolvimento das “inovações em remotelização” faz com que o HaH seja cada vez mais considerado como alternativa à admissão de pacientes nos ambientes hospitalares físicos. Na Espanha, por exemplo, região da Catalunha, o HaH e cada vez mais utilizado. Sua adoção aumentou de 5.185 episódios/ano em 2015 para 8.086 episódios/ano em 2019, sendo que as taxas de mortalidade foram semelhantes entre HaH e internação convencional (acompanhe aqui). A hospitalização remota, baseada em telemedicina, redes de dados, medical devices, sensores, registros digitais e inteligência artificial estáo apenas no seu nascedouro. É preciso ganhar maturidade e assertividade, não faltando problemas, dificuldades e desafios na sua implementação.

Há muitas prefeituras e governos estaduais no Brasil flertando com HaH, alguns com iniciativas sedimentadas, embora poucos entendam realmente o alcance do modelo. Hospital at Home não representa apenas uma “extensão do cuidado hospitalar”, notadamente para aliviar as carências de atendimento do provedor. O modelo é uma ruptura direta e irreversível ao hospitalocentrismo. Embora gradual, ele entrincheira os intervenientes (incluindo o paciente) numa matriz de responsabilidades cruzadas. Se sua lógica valoriza o cuidado residencial, ela também exige uma reconfiguração das relações de poder entre o paciente e o sistema: indivíduos e seus cuidadores devem promover efetividade, disponibilidade e esforço recuperatório domiciliar.  Uma de suas notáveis ambivalências recai sobre o autocuidado: se por um lado o paciente desfruta da conforto e intimidade do lar; por outro, aumenta a sua responsabilidade terapêutica, sob “pena” de rehospitalização. Assim, o modelo não é apenas uma alternativa a hospitalização, mas uma “metaproposta” que reconfigura o setor. Entre as novas concepções, uma delas é transferir ao paciente boa parte do esforço de reabilitação. Nem sempre será possível devido as condições da agudeza, mas será imperativo que o paciente e seus familiares se “engajem na jornada recuperatória”.

Da mesma forma, o modelo promove o debate sobre novas formas de reembolso, como está ocorrendo agora nos EUA (em 2023, existiam 281 hospitais em 125 Sistemas de Saúde, com 37 estados participando do programa do “Centers for Medicare e Medicaid Services Acute Hospital at Home”). Na mesma direção, profissionais de saúde precisam entender o conceito e adquirir novas habilidades operacionais, como, por exemplo, a proficiência em atendimento remoto. Todas as startups e investidores precisarão estar preparados para levar o cuidado médico para dentro dos domicílios. Grandes projetos de arquitetura e engenharia civil já oferecem imóveis residenciais com infraestrutura médico-assistencial. Cidades inteligentes já são projetadas e desenvolvidas para oferecer HaH em qualquer espaço residencial. Como explica Topol em seu celebre capítulo: “a saúde caminha célere em direção aos cuidados agudos domiciliares, fazendo com que médicos durmam hospitalistas e um belo dia acordem domicialistas”. 

 

Guilherme S. Hummel

Scientific Coordinator Hospitalar Hub

Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)