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Sem plataformas, Saúde caminha para ‘cuidados-mambembes’, típicos da Idade Média

Article-Sem plataformas, Saúde caminha para ‘cuidados-mambembes’, típicos da Idade Média

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Sem Digital Health Platforms (DHPs) cuidados serão piores e os custos maiores

Definindo mambembe: “algo de má qualidade, ordinário; um agrupamento de ambulantes teatrais quase sempre de baixa qualidade, formado por atores não-preparados, as vezes amadores, que percorrem e se instalam em lugares de grande carência social”. O espetáculo “Mambembe" surgiu no século XII na Europa, em plena Idade Média, quando ‘artistas’ (atores, malabaristas, cantores, palhaços, etc.) fugindo da repressão do estado-igreja viajavam em carroças apresentando shows medíocres. Também chamados de "saltimbancos", atraiam uma população desesperada e avida por paliativos. Não poucas vezes vendiam medicamentos, novas curas e tratamentos milagrosos.

Definindo plataformas de dados: “infraestruturas digitais que permitem a dois ou mais grupos interagirem. São instâncias intermediárias que aproximam diferentes agentes, como clientes, pacientes, provedores de serviços, produtores, fornecedores e até mesmo objetos físicos. Elas fornecem a infraestrutura básica para mediar as relações entre diferentes grupos, inclusive concorrentes. Uma 'plataforma de dados em saúde (Digital Health Platform – DHP) refere-se a um software que permite às organizações reunir redes de dados clínico-operacionais (historicamente armazenados em silos separados) para que equipes acessem informações em um ambiente seguro e protegido”.

Costuma-se pregar que “as cinzas das queimadas são de grande qualidade por possuírem nutrientes que fertilizam o solo, e, por isso, favorecem o crescimento vegetal”. Podemos dizer que a Covid-19 foi capaz de “fertilizar” uma das mais importantes camadas do solo-saúde: engenharia de dados e processos digitais. Elas emergiram para melhorar a prestação dos cuidados pandêmicos, como na adoção da telemedicina, permitindo que as cadeias de saúde continuassem a cuidar dos pacientes (até dezembro de 2020, pelo menos 74 países lançaram aplicativos para automatizar e auxiliar o rastreamento de contaminados e vacinados).  À medida que a Covid se tornou endêmica, podemos sentar em volta das mesas, vacinados e sem máscaras, e discutir os dramas do rescaldo epidêmico, como, por exemplo, o caos gerado pela “ausência de redes digitais de cuidados”. Descobrimos que o mundo da saúde passou a ser figital (digital + físico + social), palavra que não encanta, mas expressa um empirismo que não sentimos, mas vivemos, que não escolhemos, mas adotamos. O figitalismo é um dos modelos que nos ajuda a escapar do “circuito mambembe da saúde”, aquela cadeia de valor amadora, despreparada, ilusória e que sequestra as fronteiras dos sistemas de saúde. O mambembe envolve usuários carentes e desfavorecidos, médicos mal remunerados, enfermagem desprotegida, medicamentos aviltantes, insumos inflacionados, procedimentos represados, governos perdidos, etc.  Não importa para onde corremos, sempre parece que “os saltimbancos estão chegando”.

Um modelo capaz de nos distanciar do ‘cuidado-mambembe’ é a plataformização digital de dados e serviços. O estudo “Waste in the US Health Care System: Estimated Costs and Potential for Savings”, publicado em 2019, estimou que cerca de ¼ de todos os gastos com saúde nos EUA é desperdiçado devido à: (1) falhas na prestação e continuidade dos cuidados; (2) falha na coordenação dos cuidados (em pleno século XXI é inimaginável que 2 ou mais profissionais de saúde, de diferentes disciplinas clínicas mas cuidando do mesmo paciente não estejam em rede); (3) tratamentos excessivos ou cuidados de baixo valor; (4) falhas de precificação, fraudes, abuso nos tempos de espera; e (5) complexidade administrativa. Os esforços para reverter essa situação esbarram em uma miríade de obstáculos, mas as “plataformas de serviços integrados” emergem como uma das únicas saídas tecnológicas capaz de mitigar as falhas e idiossincrasias citadas no relatório.

Sempre é interessante perguntar por que 3, 4 ou 10 hospitais pertencentes ao mesmo grupo, ou da mesma Operadora de Saúde, não têm uma coordenação de cuidados implementada dentro de uma única plataforma? Quatro pacientes com o mesmo perfil social e um quadro de amidalite, por exemplo, podem ser tratados no mesmo hospital (ou nas várias unidades da mesma organização) por diferentes procedimentos médicos, com grandes probabilidades de todos estarem na contramão das evidências científicas. É possível que os quatro pacientes tenham sua morbidade resolvida ou atenuada, mas o hospital (ou grupo hospitalar) certamente promoveu e estimulou a “variabilidade clínica”, uma fogueira queimando recursos em escala voraz. Certamente que um diretor clínico levantará a mão: “tolice, sendo quatro pacientes diferentes, sempre terão procedimentos diferentes”. Certo, e errado. Há centenas de patologias, ou jornadas de pacientes, que podem ser embarcadas em “clusters clínico-operacionais”, controlados por plataformas de dados (ou plataformas de cuidados clínicos). Aqui vale a escrita e brilho do psicanalista Rubem Alves: “Pensamentos vagabundos são aqueles que a gente pensa sem querer pensar, diferente dos pensamentos que a gente pensa por precisar deles. Os pensamentos que a gente pensa por precisar deles andam sempre um atrás do outro como soldados em ordem unida. São ferramentas. Eles vêm quando a gente os chama. Os pensamentos vagabundos são como as nuvens que o vento leva, uma hora se parecem com um cachimbo, o cachimbo vira um navio, o navio se transforma em elefante, o elefante vira flor (...) São brinquedos. Eles vêm sem serem chamados”. Plataformas Digitais de Dados entrarão na Cadeia de Saúde como ferramentas, como soldados que estão sendo convocados para uma batalha. 

Um caso exemplar é a Austrália, o sexto maior país do mundo (o Brasil é o quinto). Eles também possuem um sistema de saúde misto, com serviços públicos e privados coexistindo. O sistema público é universal (Medicare, um seguro público de saúde), oferecendo acesso a todos os cidadãos e residentes permanentes no país. Muitos australianos também possuem um seguro de saúde privado, que complementa o Medicare. O país possui o “MHR - My Health Record”, uma plataforma de Registro Eletrônico de Saúde que contém, resumidamente, os dados clínicos dos australianos que aceitaram participar do programa, independente de acessarem o sistema pela porta pública ou pela privada (mais de 90% da população aderiu ao projeto e possui um MHR). A Digital Health Agency (órgão público que gerencia o sistema), relatou que em janeiro de 2023 havia 355 milhões de documentos clínicos no sistema (laudos de patologia, imagens médicas, resumos de alta, etc.). Embora os números possam parecer consistentes, os ganhos clínicos não foram condizentes com as expectativas do Governo. Apesar de quase todos os GPs (clínicos gerais), farmácias e hospitais públicos estarem conectados a plataforma, apenas 32% dos médicos especialistas acessam o sistema. Mesmo com o crescimento do uso de dados, hospitais públicos, por exemplo, aproveitaram pouco o potencial interoperável do sistema, visualizando menos de 2,8 milhões de documentos enviados por outra organização hospitalar nos 12 meses de 2022. Da mesma forma, o usuário ainda está longe de utilizar o MHR como ferramenta de proteção a saúde: menos de um em cada quatro indivíduos visualizou seu MHR em 2022, sendo que menos de 10% dos relatórios de patologia foram acessados pelos consumidores.

A conclusão foi que havia baixo conhecimento das equipes sobre o potencial do Sistema. Mesmo com uma usabilidade aquém, ficou cada vez mais claro que a plataformização impactava diretamente a qualidade dos serviços e os custos do setor. Em março de 2023, o governo australiano esqueceu os ‘pensamentos vagabundos’ e relançou o “My Health Record” com várias funcionalidades novas, fazendo com que o relançamento e a usabilidade da plataforma fossem a principal prioridade do país na área de saúde. Na outra ponta, o governo desenvolve o Health API Gateway, uma nova infraestrutura digital para troca e acesso de informações médicas, já sendo considerada a base para uma nova “estrada da informação” para cuidados primários. O novo gateway vai melhorar a conectividade da plataforma MHR em todo o país, entrando em operação no final de novembro de 2023. Assim, em menos de 4 anos o país lançou uma Digital Health Platform (DHP), evidenciou seus resultados, reprogramou o projeto e reconfigurou o programa com novas aplicabilidades para toda a cadeia de saúde. Proust diria aos australianos “em frente: perder o caminho não é nada; o diabo é não encontrá-lo!”

Da mesma forma no Reino Unido. O país já conta com uma plataforma nacional de dados (“the Spine”), que reúne os registros de pacientes britânicos disponíveis no “Summary Care Records” (SCR), um prontuário sumarizado que permite aos pacientes acessar seu resumo de dados em saúde. Em 2022, o NHS lançou um novo projeto: implementar o NHS Federated Data Platform”, ou seja, reunir todas as informações de saúde da população em uma única fonte objetivando melhorar a tomada de decisão e os resultados clínicos. O governo realizou licitação para desenvolvimento e gestão da nova DHP, que possibilitará a cada rede hospitalar do país (Trusts) e aos Sistemas de Atendimento Integrado (ICS) terem sua própria plataforma, mas todas interconectadas compartilhando dados entre si.

Embora não seja objetivo deste paper tecnicizar o contexto, abrimos um parágrafo para explicar com mais densidade o conceito de plataformização em saúde. Segundo descrição do Gartner Group, uma Digital Health Platform (DHP) é uma camada de dados integrada (em rede) onde provedores e operadores a utilizam para conectar e interagir aplicativos de assistência médica, fornecendo gestão de dados e metadados para outras camadas. Outro nível, por exemplo, seria a “camada empacotada capaz de realizar negócios”, também conhecida como PBCs (Packaged Business Capability Layer), onde aplicativos podem ser aproveitados usando APIs (interfaces baseadas em padrões). Esses PBCs se transformam em bibliotecas de funções de negócios, onde os provedores compõem e orquestram interfaces com outras business-applications. Uma terceira camada seria o “layer de composição” (centrado no paciente) em que os provedores conectam os próprios PBCs a ferramentas digitais capazes de acompanhar as experiências do usuário (comumente denominadas User Interfaces ou User Experiences).  Assim, os intervenientes da plataforma (qualquer empresa privada ou instituição pública de saúde) acompanha a jornada do paciente (ponta a ponta), com anuência e autorização do mesmo, de modo a melhorar o fluxo operacional clínico e reduzir o tempo de decisão e processamento (veja a arquitetura na figura abaixo).

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Bem, agora pense que as camadas também podem instruir o atendimento, propondo dezenas ou centenas de variáveis que a plataforma armazena e sua IA seleciona em tempo real (para cada caso que o médico estiver atendendo). As camadas também podem chegar ao “hospital at home”, informando ao paciente qual autocuidado preventivo pode ser mais importante em cada estágio de sua jornada. Ele mesmo acessa a DHP e pergunta, por exemplo, se há uma interação medicamentosa danosa na droga que resolveu ingerir devido a uma indigestão ocasional, ou se um determinado alimento pode beneficiar ou prejudicar a sua ansiedade, etc. (sim, muito parecido com o que ocorre nos diálogos com a ChatGPT). Assim, as plataformas digitais de dados alcançam pesquisadores, GPs, especialistas, cuidadores, varejo farmacêutico, laboratórios de análise, seguradoras, governança pública, chegando até o paciente. “Camadas interoperáveis e inteligentes” formando uma ‘estrada de informação em saúde’ capaz de articular e elaborar casas-inteligentes, idosos-espertos, telemédicos-ubíquos e pacientes-assistidos.

Uma DHP reduz a hospitalização e isso pode explicar por que ainda existem tantas resistências ao uso dos modelos de saúde plataformizados. Como indaga o médico e pesquisador Eric Topol no paperThere's No Place Like Home for Hospital Care”, publicado em 1 de maio de 2023 em conjunto com o médico Abraham Verghese e a Dra. Helen Ouyang: “Certamente, a Associação Americana de Hospitais não vai apoiar o movimento “hospital-at-home” porque a comunidade hospitalar é o seu modelo financeiro. Os EUA não estão bem-posicionados para isso. Os hospitais respondem por um terço de nossos gastos em saúde: US$ 4,2 trilhões ou mais. Eles não vão se inclinar a abrir mão disso”, explica Topol, ao que Ouyang responde: “Os hospitais, de certa forma, não têm escolha. Tudo caminha em direção ao home care, para o bem ou para o mal. A pandemia condicionou isso”.

No caso das DHPs, é plausível pensar que “ninguém inventou nada nesses últimos anos, apenas juntou várias tecnologias que gravitam na biosfera digital (Nuvem, APIs, IA, LLM, 5G, 6G, blockchain, etc.), que foram amadurecendo e estão sendo utilizadas como ‘argamassa’ para as redes inteligentes de dados clínicos”. Ainda segundo o Gartner, as DHPs emergirão como a mais econômica e tecnicamente mais eficiente forma de dimensionar novos recursos digitais dentro e entre os ecossistemas de saúde, substituindo a era dominante do registro eletrônico de saúde monolítico: “a abordagem DHP permite que um CIO ajuste o portfólio de aplicativos ao ritmo das mudanças dos negócios. Ele coloca a organização no caminho para a geração de valor de forma mais rápida, respondendo aos imperativos estratégicos e as incertezas externas”, explica o Gartner (“54% dos CIOs da área de saúde relataram que em 2023 vão investir em plataformas de integração, APIs e arquiteturas de interoperabilidade”).

Como explica o sempre brilhante cientista Silvio Meira: “uma forma de ver a informação é pensá-la de maneira antropocêntrica, o que nos levaria a dizer que os marcos da ‘longa história da informação’ poderiam ser: (1) DNA; (2) cérebros; (3) ferramentas; (4) texto e (5) código, ou seja, quatro bilhões de anos, em cinco palavras”. O DNA entrou como informação nos cérebros de nossos antecessores há mais de 2 milhões de anos e, provocados, os cérebros “criaram” ferramentas de todos os tipos. “Uma das ferramentas separou o Homo Sapiens da competição animal: o fogo. Mas, qual seria a sua utilidade se ninguém soubesse como iniciar e terminar uma fogueira de forma repetível e segura, nem entendesse para que e como usar?”, pergunta Meira. À medida que mais gente foi entendo e aprendendo a usar o fogo, aumentou exponencialmente a quantidade de indivíduos capazes de fazer bom (ou mau) uso dele. “Assim caminhou a humanidade, usando o efeito do expertise associado a uma tecnologia (ou ferramenta) para se desenvolver”, completa Meira. Com o passar dos séculos, uma parte do “efeito-expertise” (informação) passou a ser codificada em textos, distribuídos no início da escrita, sendo que no século XV, a prensa de tipos móveis inovou o uso do texto, gerando bens e serviços (livros, bibliotecas, livrarias, escolas, empresas, etc.). Assim, a prensa foi a plataforma que cunhou a revolução da informação e suas redes de conhecimento. Na Saúde ainda estamos buscando o fogo (“sagrado”) capaz de resolver todos os nossos problemas, quando o que precisamos é implantar a “prensa” e deixar que seus bens e serviços ganhem velocidade, assertividade e valor. Sem isso seremos cuidadores-mambembes, fazendo piruetas, malabarismos, saltos mortais e, como domadores circenses, tentando fazer a ‘inclusão tecnológica’ dar cambalhotas em anéis flamejantes.   

Guilherme S. Hummel

Scientific Coordinator Hospitalar Hub

Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)

Observação: a “Plataformização na Saúde” é tema de vários Episódios da oficina de estudos “Future of Digital Health”, o mediacast do portal Saúde Business (YouTube, Spotify, etc.), que iniciou suas 12 sessões em 15/03 e termina ao final de maio. Nela, não interessa o passado ou o presente da Saúde, só o porvir.