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Uberização da avaliação médica: um caminho adequado?

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Como ocorre no iFood ou após uma viagem de Uber, é a maneira adequada de avaliar prestação de serviços médicos? 

Não, não sou contra avaliação de desempenho médico. De forma absolutamente pioneira, já propus que médicos de uma equipe que coordenava fossem avaliados, não apenas por indicadores de eficiência e qualidade, mas também por representantes das outras profissões da saúde (equipe) e pacientes/familiares. Não foi aceito, na época, o envio de formulário para pacientes/familiares, história que já contei previamente aqui em Saúde Business. 

Achei oportuno revisitar este assunto após algumas instituições norte-americanas passarem a divulgar em seus sites, junto ao local onde apresentam o hospitalista com foto e pequeno texto, a nota média que os pacientes lhes dão, exatamente nos mesmos moldes que conhecemos dos aplicativos iFood e Uber. Mais de um amigo hospitalista descreveu desconfortos.  Conversamos então, em fórum que participo, sobre armadilhas e consequências negativas não intencionais dessa abordagem.

Avaliação e transparência são importantes e não é esta a discussão. O texto é para instigar aqueles que são/serão avaliados e os próprios usuários a pelo menos entender melhor o cenário, quem sabe ajudar a moldá-lo. Se devem existir as avaliações, e absolutamente devem, devemos lutar para que essas medições sejam úteis e produtivas. As coisas medidas acabam valorizadas, de maneira que ter uma medida adequada e aprimorada sempre que necessário é fundamental. Se mensurarmos de fato Qualidade, poderemos ver quem está aquém, porque está ficando aquém. E, talvez, possamos intervir com assertividade. Mas o que parece fácil, não é, tal como já escreveu Lawrence Weed, em 1981:

To say that physicians are good or bad would be to imply that there are well-accepted standards of performance and random audits to judge them by; but there are none. Their nearly total freedom to determine the context of their professional activities and their own standards within this context, especially in the private office where much of medicine is practiced, precludes any rational conviction about the effects of their efforts.

Nas últimas décadas indiscutivelmente avançamos. Outra mudança, com pontos positivos e negativos, foi que migramos mais de médicos individuais para conglomerados médicos. Entretanto, ainda existem dificuldades não apenas para medir o que se quer medir, mas até mesmo para definições redondas, adiante das clássicas fórmulas, de qualidade e valor. Mais recentemente, trabalhei a questão aqui.

Há disponibilidade atualmente de inúmeras ferramentas de avaliação e aquela possibilidade que tentei implantar e não passou na época, perguntando aos pacientes, é uma das mais interessantes. É bastante aceito que avaliação pelo paciente é uma medida importante: correlaciona-se com alguns resultados clínicos, com retenção de clientes e, através de dados menos robustos, com menos judicialização na saúde. A satisfação do paciente deve (e acredito possa) refletir parcialmente a entrega oportuna, eficiente e centrada no paciente de cuidados de saúde de qualidade. E por isso se justificam as pesquisas de satisfação do paciente. Entretanto, é maduro e racional entender o processo como inacabado, e que talvez nunca seja perfeito: a metodologia é falha e os pacientes não são avaliadores imparciais, entre outras razões.

Problemas de natureza sistêmica afetam o desempenho do médico - de todos os profissionais assistenciais, na verdade. Não bastasse o burnout direto que isso gera, essas ferramentas de avaliação muitas vezes devolvem ao médico frustrações de clientes que deveriam ser dirigidas ao sistema, retroalimentando gatilhos para burnout, que já é uma epidemia nos EUA e outros países. A Press Ganey, para citar outro exemplo, tem taxa de retorno em 4-20% e os pacientes que retornam são uma amostra não aleatória. Se submetermos uma publicação baseada em survey e dessa forma, não passaria por um bom peer-review e acabaria rejeitada pela maioria das boas revistas científicas. 

Satisfação do paciente não é sinônimo absoluto de qualidade médica:

  • Há associações comemoráveis (como as elencadas acima), mas existe também associação de maior satisfação com sobrediagósticos, sobretratamentos e sobreutilização de recursos em saúde em geral;
  • Há menor satisfação em clientes que não recebem medicamentos desejados, embora não justificados;
  • Há médicos amados por pacientes com padrões de cuidado absolutamente questionáveis; 
  • Há perfis de paciente que reconhecidamente reclamam mais (e isto faz parte até mesmo de alguns quadros clínicos). Se o sistema pouco ajuda o médico no manejo destes doentes (como é bastante comum) e a interpretação das avaliações for simplória, profissionais acabarão estimulados a se desvincular do perfil de paciente (e já há outros facilitadores ativos), prejudicando ainda mais os vulneráveis da história. 

Cabe à questão dos sobrediagnósticos e dos sobretratamentos um pouco mais de destaque. Estima-se que entre 10-30% de todas as práticas de saúde têm pouco ou nenhum benefício para o paciente. Não bastasse, muitas delas possuem potencial de malefício, quando não é o caso da ciência apontar que, em média, prejudicam mais do que ajudam. Nesse cenário, campanhas como a Choosing Wisely buscam ajudar médicos e engajar pacientes em diálogos sobre excessos em intervenções, colaborando para escolhas sábias em saúde. Há um braço dela no Brasil: www.choosingwisely.com.br. Ocorre que resta obviamente mal calibrado um sistema que queira combater desperdícios e danos decorrentes de ilusões terapêuticas ou medicina não baseada em ciência, e que, ao mesmo tempo, permite e valoriza avaliações simplórias. É público e notório, exacerbado em tempo de individualismo, de pós-verdade e opiniões inabaláveis, que há perfis de paciente que lidam mal com incerteza (em certo grau uma característica humana). Que, a depender da cultura local, isto pode ser altamente prevalente, e que parcela mais ativada destes clientes ficam exageradamente descontentes pela simples tentativa de diálogos contra-intuitivos, em cenários onde podem estar hipossuficientes para compreender que o interesse do médico é justamente na saúde deles. 

Se, por causar desconfortos inerentes ao verdadeiro vínculo - daqueles que se preocupam - iremos perder "estrelinhas", não precisa ser muito esperto, basta ligar os pontos: quem mais pode se prejudicar???

Sobrediagnósticos e sobretratamentos não se resolvem com ambientes que abafam conflitos e controvérsias necessários e que simplesmente podem levar a reflexões difíceis, metaforicamente dolorosas. Jünger, o escritor e filósofo alemão, dizia que a dor não pode ser levada ao desaparecimento total, que isto gera um "capital invisível", que "se aumenta com juros e juros sobre juros". 

Precisamos avaliar e fazer gestão a partir de informação. Mas o processo merece atenção à altura da sua complexidade. Médicos devem sim vencer a "dor" de serem avaliados. Mas têm o direito a uma avaliação abrangente e justa. 

TAG: Gestão