"Imagine se ainda tivéssemos que reservar hotéis ligando para a recepção?” Embolou o jogo: a velocidade de aterrissagem das IAs é de tal ordem que eclipsa o fato que muitos Sistemas de Saúde ainda utilizem pouco a Saúde Digital, ou sequer entendem o que o Digital significa para a Saúde. O Brasil é um caso típico: com euforia, dezenas de aplicações em GenAI aterrissam na saúde todos os dias, mas a pista de pouso para elas está esburacada, com baixa sinalização e, por vezes, o pouso acontece sem auxílio de ‘radar’. Não é diferente em muitos dos países que ainda não fizeram a “lição de casa”, ou seja, nações que não puderam, não quiseram ou não têm pressa em produzir Transformação Digital. Nesses casos, vale um velho provérbio turco: "Quando um arlequim se muda para o palácio, ele não se torna rei. O palácio vira um circo". Falamos em LLMs, mas não temos um Registro Eletrônico Nacional consistente. Projetamos Assistentes Conversacionais, ainda que nossa RNDS seja tímida e longínqua. Testamos Robótica Multimodal, embora a Cadeia Nacional de Saúde ainda utilize minimamente qualquer Computação em Nuvem.
A revista TIME, em sua edição de setembro/2024 (“How Digital Technology Can Help the U.N. Achieve Its 2030 Agenda”), contabilizou: “mais de 2 bilhões de pessoas não têm acesso a cuidados de Saúde adequados, alguns dos quais podendo ser fornecidos por telemedicina, com medicamentos entregues por farmácias online”. Em pleno fim do primeiro quarto do século, o maior desafio das IAs na Saúde não é tecnológico ou econômico, mas sim a baixa inclusão da Saúde Digital nas cadeias de saúde ocidentais.
Essa “bagunça geossanitária”, onde existe pouca uniformidade global na adoção das práticas de Saúde Digital, foi o mote para a mais importante autoridade mundial em Saúde, a OMS (Organização Mundial de Saúde), se pronunciar sobre o tema. Ainda que venha com atraso superior a uma década, a entidade produziu um contundente documento de aderência global à Saúde Digital. Seu relatório “Going digital for noncommunicable diseases: the case for action", publicado em setembro/2024, é uma inequívoca prova de que muitos países continuam atrasados (ou insensíveis) a essa realidade. Talvez o Brasil entre eles.
“O futuro da Saúde é digital”, prefaciou Tedros Ghebreyesus (Diretor-Geral da OMS) no documento. Essa realidade flutua há duas décadas pelos corredores da organização, com “apoio aqui e ali”, mas jamais com a veemência atual. Trata-se de uma flechada nos países que pretendem ‘explorar Marte, ou guerrear com drones’, mas ainda possuem Sistemas de Saúde medievais.
“Um investimento hoje de US$ 0,24 adicionais por paciente/ano em intervenções de Saúde Digital (como telemedicina, IA chatbots, etc.) pode ajudar a salvar 2 milhões de vidas com DNTs (doenças não-transmissíveis) na próxima década; além de significar ganhos de 5 milhões de anos/vida; 199 bilhões de dólares em benefícios econômicos adicionais; com aproximadamente 7 milhões de eventos agudos e/ou hospitalizações evitadas; sem falar no retorno sobre o investimento de 19 dólares para cada dólar investido”, explica o estudo da OMS.
Realizado em conjunto com a UIT (União Internacional de Telecomunicações), o trabalho é uma coletânea de evidências de quanto os países perdem por não aderir, ou aderir tardiamente ao Digital Health. Os números são alarmantes: “Para cada US$ 1 investido em Telemedicina, o retorno econômico para controle do Diabetes Tipo 1 é de US$ 7,00; e o retorno para Doenças Cardiovasculares é de US$ 14,00”. Outro serviço digital em saúde, muito usado em países de baixa renda, é conhecido como “Mobile Messaging”, ou seja, ‘serviço de mensageria digital entre a cadeia de saúde e o paciente’ (alertas, agendamento de consultas, laudos de exames, apoios terapêuticos, informações de acesso à saúde, vacinação, etc.). Segundo a OMS, para cada dólar investido em Mobile Messaging o retorno, por exemplo, para o controle da DPOC (Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica) é de US$ 11,2. Sem falar nas “intervenções algorítmicas” (chatbots IA): o documento calcula que ‘para cada dólar investido nessa prática, o retorno para as Doenças Cardiovasculares é de US$ 14,8’. A garimpagem econômica do relatório, com referência à Saúde Digital, é difícil de ser contestada.
"Desertos médicos" são as chamadas áreas com baixos níveis de “serviços de saúde digital”, desafiando o acesso, a qualidade e a sustentabilidade do atendimento. Trata-se de uma expressão de grande aplicabilidade ao Brasil, que possui grandes áreas com baixa atenção médica. A pandemia foi a ignição para a OMS (e para boa parte dos países do G50) acelerarem a implementação de máquinas digitais de suporte à prática médica.
Outro estudo, centrado no cumprimento da meta: “100% dos cidadãos da UE devem ter acesso a registros eletrônicos de saúde até 2030”; publicado pela Comissão Europeia em julho/2024 (“Digital Decade 2024: eHealth Indicator Study”), mostrou que, em média, na camada de “acesso digital”, os 27 países da União Europeia atingiram em 2024 uma cobertura de 80% da meta, uma melhoria de sete pontos percentuais em relação ao ano de 2023. Isso mostra um notável ‘sprint’ para o incremento de eHealth (81% dos Estados Membros tiveram ganhos de pontuação em relação ao ano anterior).
Os cinco países mais maduros na União Europeia em Saúde Digital são Bélgica (100%), Dinamarca (98%), Estônia (98%), Lituânia (95%) e Polônia (90%). Dos Estados-Membros, 89% já fornecem acesso a Registros Eletrônicos por meio de um serviço centralizado de acesso. As categorias mais maduras são: (1) dados sobre identificação pessoal (nível de maturidade já se encontra em 94%); (2) ePrescription (maturidade de 85%); (3) eDispensation (81%); (4) eMedication (79%) e (5) Laudos de Exames laboratoriais (78%). As categorias menos maduras: Compartilhamento de Imagens Médicas (26%); Dispositivos Médicos e Implantes (52%); Relatórios Automatizados de Alta hospitalar (69%) e Procedimentos/Cirúrgicos (70%).
Seria interessante comparar os níveis de Saúde Digital do Brasil com outros países que disputam conosco os 15 maiores PIBs do planeta (G15). A sólida pesquisa “TIC Saúde 2023”, publicada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), mostra como os serviços oferecidos aos pacientes ‘em meio digital’ ainda são parcos, seja no setor público como privado. Nas várias dimensões, mais de 60% dos estabelecimentos de saúde não oferecem (em modo online) Agendamento de Consulta, Agendamento de Exames, Visualização de Laudos de Exames, Visualização do Prontuário, ou Interação com a Equipe Médica. Figura abaixo.
As Consultas Médicas Virtuais (Telemedicina), que ganharam espaço mundial pós-pandemia, também não mostram grandes avanços na Cadeia Nacional de Saúde. Pouco mais de 20% dos estabelecimentos de Saúde oferecem esse serviço (19% em 2022, e 22% em 2023). Figura abaixo.
As razões para esse baixo e lento nível de Saúde Digital se acumulam em todas as direções, mas principalmente no reduzido nível de orquestração entre as várias entidades alocadas na sua expansão (Ministério da Saúde, Secretarias Estaduais e Municipais, lideranças da Saúde Suplementar, Conass, Provedores de Serviços de Saúde públicos e privados, Agências Reguladoras, etc.). Todos clamam palavras de ordem a favor da Saúde Digital, mas os números do “TIC Saúde 2023” mostram resultados ainda tímidos para uma das 10 maiores economias do mundo.
Segundo o relatório do CGI.br, dos 7.100 estabelecimentos nacionais de saúde do estudo, alguns dados ainda revelam a baixa prioridade do digital na saúde, como abaixo:
- somente 33% dos estabelecimentos possuem conexão acima de 100 Mbps, sendo que das UBS (Unidades Básicas de Saúde), apenas 15% possuem velocidade superior a 100Mbps (“ressalte-se que quase 33% dos gestores não souberam responder sobre a velocidade da conexão contratada em 2023, sendo 45% de estabelecimentos públicos e 15% dos privados”, explica o estudo);
- apenas 22% dos estabelecimentos com internação e mais de 50 leitos fizeram em 2023 alguma análise utilizando Big Data;
- nas UBS, cerca de 41% ainda não utiliza tablets como ferramenta funcional, considerado um equipamento fundamental para as Equipes de Saúde da Família;
- em 2022, 55% dos estabelecimentos destinaram parte de seus recursos para gastos ou investimentos em TI; em 2023 o montante foi somente de 47% (‘40% das lideranças gestoras não sabiam dizer qual teria sido o investimento em TICs’);
- assustadoramente, a presença de um Departamento de TICs nas organizações de saúde era de 30% em 2022, caindo em 2023 para 22% (mesmo patamar de 2013), sendo que no setor público caiu de 19% para 11%.
- somente 30% dos estabelecimentos de saúde no país adotaram ações para se adequar à LGPD, nomeando um encarregado para essa função.
- em 2013, 22% dos estabelecimentos mantinham suas informações apenas em formato eletrônico; uma década depois, em 2023, esse número subiu tão-somente para 32%.
- a disponibilidade e o compartilhamento eletrônico de dados dos pacientes são vitais para o atendimento, todavia desde 2021 esse compartilhamento não aumentou, incluindo 2023. Exemplo: dos hospitais com até 50 leitos (com internação), apenas 39% disponibilizam imagens de exames radiológicos do paciente (em 2022 eram 55%).
O que acontece quando emerge o fenômeno das GenAIs? Muitos países testam soluções com IA na Saúde, embora outros, como o Brasil, se veja relutante e inseguro para esse salto cognitivo-artificial. Com toda razão: como produzir valor em escala com as IAs, se as bases de uma Saúde Digital Nacional continuam atrasadas uma década? Como reduzir de ‘forma efetiva’ as despesas dentro da Cadeia de Saúde se a maior parte dela sequer utiliza Computação em Nuvem?
O setor nacional de saúde está perdendo, mais uma vez, o trem da inovação simples, acessível e acumulativa. Não se trata de incompetência das autoridades, mas sim de relutância em legislar ou executar rapidamente avanços contra a ‘procrastinação digital’. Saúde Digital não é prioridade no Brasil. Está entre as prioridades, com certeza, mas não tem força para ultrapassar a morosidade das “implementações feitas com base na boa vontade municipal”. Não contam com a obrigatoriedade legal de cumprir prazos, metas, com risco de suspensão de benefícios no caso de descumprimento. Essa é uma enorme tarefa: convencer Estados, Municípios e Usuários de que o atendimento não-digital em Saúde é a mais perversa ferramenta de demolição do SUS.
Ainda temos na Saúde guetos analógicos inexplicáveis, nos quais a automação digital é rara e incipiente. Um exemplo revelado pelo CGI.br são as funcionalidades voltadas para apoio a ‘tomada de decisão clínica’: segundo o estudo, apenas 35% dos estabelecimentos de saúde têm diretrizes clínicas ou práticas recomendadas (uma área em que o Digital avançou soberanamente na última década). Funcionalidades que emitem alertas e lembretes sobre interações medicamentosas, alergias ou contraindicações, por exemplo, estão presentes em menos de um terço dos estabelecimentos aferidos. Nossa estrutura de “troca de informações eletrônicas entre estabelecimentos” (envio ou recebimento de relatórios sobre a assistência ao paciente, informações clínicas e resultados digitais de exames laboratoriais) está presente em apenas 41% dos estabelecimentos do país (só 3 em cada 10 é capaz de trocar dados entre si).
Apesar do ‘furor’ dos pacientes em buscar informações sobre saúde na Internet (54%), metade (49%) dos estabelecimentos da cadeia de saúde não tinham um website em 2023 (um percentual que se manteve estável em relação a 2022). Não é diferente naqueles atributos em que a Saúde Digital é imbatível: (1) Agendamento de Consultas e Exames; (2) Visualização de Prontuários do Paciente e (3) Acesso aos Resultados de Exames: menos de 50% dos estabelecimentos nacionais de saúde oferece qualquer um desses serviços de forma digital, sendo que a Visualização do Prontuário não chega a 20%.
Mas a maior dicotomia está na Telemedicina (chamada Telessaúde no doc da CGI.br), seja nas práticas de Educação a Distância em Saúde; ou no Monitoramento Remoto; ou na Teleconsultoria; ou mesmo no Telediagnóstico e Teleconsulta. O resultado é o mesmo: 70% da cadeia nacional de saúde (com acesso à Internet) não oferece esses procedimentos online. O maior disparate talvez esteja na chamada Consulta Virtual (teleconsulta): praticamente não houve avanço significativo nos anos de 2021 (18%), 2022 (19%) e 2023 (22%). Consagrada como uma das melhores formas de reduzir os problemas de acesso no primeiro atendimento, essa prática é quase desprezada pelo Estado e pela Saúde Privada Nacional. O estado do Amazonas possui mais serviços de Teleconsulta (28%) do que São Paulo (24%), Minas Gerais (20%) e Rio de Janeiro (13%). A distância justifica, mas a escala demandante do serviço no Sudeste não justifica seus baixos índices de usabilidade.
Outro espantoso atraso está no uso da Computação em Nuvem: 63% dos estabelecimentos de saúde com mais de 50 leitos só utilizam Nuvem para envio e recebimento de email (!); apenas 57% a utilizam para armazenamento de arquivos ou banco de dados; não mais de 34% a utilizam para aumentar a sua capacidade de processamento; e somente 35% utilizam os serviços de Nuvem para armazenar sistemas de backoffice (serviços de administração). Nesse sentido, não é de se estranhar que 93% da cadeia de saúde do país não utilize qualquer serviço de Big Data; ou que apenas 1% utilize Blockchain; ou mesmo que só 3% façam uso de Inteligência Artificial (perto de 3% possui operações de robótica e apenas 4% utilizam Internet das Coisas).
Por óbvio, existem exceções. Como uma das nações economicamente mais desenvolvidas do mundo, o Brasil tem ilhas de excelência. Há pelo menos duas centenas de hospitais no país, por exemplo, que não precisam incorporar inovação, eles criam a inovação. Da mesma forma, é necessário salientar que o Brasil avançou nos últimos anos em Saúde Digital, mas com velocidade injustificável. Quem quiser se concentrar no “copo cheio”, o estudo da CGI.br poderá mostrar evoluções interessantes e positivas. Todavia, o país é lento em evolucionar na infosaúde. A lentidão mitiga a criatividade, trava a resolutividade e espanca a inovação logo na raiz. “Os resultados da décima edição da pesquisa TIC Saúde, conduzida entre fevereiro e julho de 2023, com gestores de estabelecimentos de saúde em todo o país, revelam avanços significativos no que diz respeito aos serviços online e de telessaúde, mas também apontam para uma estagnação na adoção de sistemas eletrônicos e suas funcionalidades”, conclui o estudo do CGI.br
Saúde Digital é o único meio capaz de justiçar e reduzir as iniquidades em Saúde. Precisamos nos engajar nela, fazer dela um princípio de vida, um liame catalisador... Podemos substanciar seu uso de forma provocativa, como feito neste paper. Mas podemos também explicitar de forma metafísica e até lírica a utilização da Saúde Digital. Afinal, o que é o SUS senão o nosso mais efetivo abrigo em vida. Heidegger (1889-1976) explicava que “abrigo” é algo maior do que proteção ou refúgio, sendo o espaço onde habita o nosso pertencimento. Parafraseando o poeta portenho Roberto Juarroz (1925-1995) num diálogo ficcional com nosso abrigo-SUS: “Você é meu abandono mais completo, minha invulnerabilidade, minha zona livre, minha distância zero e o que me isenta de cuidar de mim mesmo. Talvez seja por isso que todos se juntem a você. És minha maior lembrança e meu maior esquecimento. Já não sei se você é minha mais pálida solidão, ou minha companhia mais insubstituível”. Não é possível mais existir o SUS sem o “SUS-Digital”.
Guilherme S. Hummel
Scientific Coordinator Hospitalar Hub
Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)