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Lavar as mãos, isolamento e máscara: o “autocuidado” nos salva do surto

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O ‘autocuidadorismo’ é o empreendedorismo aplicado a nossa saúde

Embora possa parecer que a vacina seja a ‘grande paladina’ da pandemia, o que evita mesmo que os números epidêmicos sejam ainda mais catastróficos são três simples práticas de autocuidado: (1) higienizar as mãos; (2) se isolar em casa e (3) usar uma simples máscara facial. Nem foi a ciência ou a tecnologia que nos protegeu em escala mundial, mas sim o antigo e insubstituível autocuidado. No século XXI, ele será o grande eixo revolucionário de todos os sistemas de saúde, públicos e privados. Em uma civilização com crescentes demandas por serviços sanitários, mas com oferta muito aquém do necessário, não existe ‘bala de prata’, seja econômica ou gerencial. O único driver coletivo capaz de nos proteger das tragédias epidêmicas será a ‘consciência individual de autopreservação’ de nosso corpo e mente. O resto é uma cesta bizarra de sofismas e utopias que há um século tenta reduzir a iniquidade sanitária, sem sucesso. Aos que esperam, por exemplo, o milagre celestial do ‘equilíbrio de contas’ na Economia da Saúde só resta reler com atenção Adam Smith, que no século XVIII deixou claro: “a quantidade da demanda é inversamente proporcional a oferta de um produto”.  Assim, a única forma de prover algum equilíbrio entre o eixo 1 (“bilhões de doentes espalhados pelo planeta) e o eixo 2 (“oferta de serviços de saúde para neutralizar os doentes”) é reduzir o primeiro eixo. Não há outra saída. Se não o fizermos, a curva da inflação de custos na Cadeia Global de Serviços de Saúde conhecerá ascensão até o juízo final. 

É provável que o autocuidado mude o jogo neste século. Não porque os indivíduos ficarão mais inteligentes ou espertos. O que vai inverter as prioridades a favor do autocuidado será a “sobrevivência do gênero humano”, um vetor propelido em 2020 mostrando a nossa impotência diante da potência viral. Vejamos um fragmento do futuro humano, que nos foi antecipado pela Covid-19: o colapso do sistema de saúde. É exatamente isso que nos espera neste século: leitos, médicos, UTIs, intensivistas, enfermagem, cuidadores, voluntários, medicamentos, oxigênio, ambulâncias, vacinas, etc. sobejamente inferiores a expansão da demanda. Perto de 7,3 bilhões de habitantes com mediana de 1,3 doenças por habitante. Resultado: caos, óbitos pelos corredores, filas exponenciais de atendimento, domicílios abarrotados de expectantes, medo, ansiedade, abandono dos protocolos éticos, conflitos sociais, deseconomia, etc. Essa é fotografia do Século XXI estampada nos jornais de 2021. Se nada progressista-renovador for alcançado, como a “disseminação do autocuidado em escala cultural”, é para esse cenário que caminhamos, mesmo sem pandemia. Essa é a vinculação crítica dos anos pandêmicos com e resto do século: sem um pacto civilizatório de autocuidado sanitário vamos repetir o panorama caótico-hospitalocêntrico de 2021 até o “fim dos tempos”. O resultado em algumas décadas será uma queda inevitável na expectativa de vida (já evidente nos EUA) e um acúmulo transversal de crises sociais geradas pela absurda iniquidade sanitária (a Covid-19 já acendeu esse pavio).

Os números pandêmicos mostram que obesos, hipertensos, fumantes, sedentários, alcoólicos, dependentes químicos e outros perfis resistentes ao autocontrole entraram em maior quantidade nas UTIs e saíram em menor número. E aqui não há nenhum fiapo de preconceito, perseguição ou discriminação. Como propositavam os filósofos iluministas: “cada um deve levar a vida ao seu livre-arbítrio, sempre que não coloque em risco o livre-arbítrio dos outros”. Certamente que nem todos os que entraram ou saíram das UTIs foram relaxados com sua saúde ao longo da vida, mas aqueles que fizeram do bem-estar e da saudabilidade um ‘mantra’ tiveram maior probabilidade de voltar para casa.

Uma análise histórica dos acontecimentos pandêmicos mostrará daqui a 20 ou 30 anos que “quando um terço da população global ficou exilada em casa se cuidando, os outros dois terços provavelmente foram salvos”. Essa mensagem entrará em nosso ‘dna-social’, seguirá por nossa memória cognitiva e lançará estacas reformistas na mente das próximas gerações, assim como ocorreu ao final da Segunda Grande Guerra, quando o massacre moldou o ocidente nas décadas seguintes (em 1947, por exemplo, o Reino Unido criaria o NHS, seguindo a força-mental de uma sociedade engolida pelos horrores da guerra). Como explicou o cientista francês Joël de Rosnay, autor do livro “La Symphonie du vivant” e outra dezena de obras sobre a origem da vida: “Uma das grandes descobertas dos últimos anos é que nem tudo é genético, existindo outros fatores que entram em jogo, como a modificação dos genes pelo comportamento humano, que é a base da epigenética. Ou seja, podemos nos tornar responsáveis por nossa saúde e por nosso envelhecimento. Podemos, enfim, fazer alguma coisa por nós mesmos, sempre que compreendamos por que o fazemos”.

A Covid-19 vai cunhar um novo ser humano, um novo paciente e um consumidor cada vez mais envolvido com saudabilidade. Essa realidade está moldando o “autocuidadorismo”, uma instância do ‘empreendedorismo’ centrada nas demandas individuais de proteção a Saúde. Esse novo consumidor vai emergir do surto levando cicatrizes emocionais para o resto da vida, ficando, portanto, mais consciente da importância do autocuidado no “próximo colapso”. Ele vai adotar algum nível de autocuidadorismo, sem escravizá-lo ao autocontrole, mas distanciando-o de uma convivência anárquica com seu corpo e sua mente. Este será o século do ‘self-care’. Já seria pela exaustão econômica global do ecossistema de saúde, e será mais ainda pelo choque de fatalidade introduzido pela pandemia. Hoje, uma criança de 5 ou 7 anos já sabe o que é vacina, não pergunta mais por que os pais usam máscara e já visualizou o significado de respirador, intubação, UTI e hospital-lotado. Muitos já viram colegas perdendo avós, pais e amigos, outros já identificam na TV uma Unidade Intensiva e para muitos o vírus passou a ser uma “expressão do mal”. A vida nesses meses e as ‘novas’ práticas familiares vão instigar a petizada a pensar diferente, fazendo com que o autocuidadorismo entre por seus poros e repouse virtuosamente em sua memória cognitiva.

Nesse contexto, a biosfera digital assume um papel cada vez mais importante em self-care. O NHS Innovation Accelerator (NIA), por exemplo, anunciou os “fellows de inovação” que participarão de seu premiado programa de 2021. Boa parte das startups envolvidas está centrada em soluções de self-care e todos serão ‘apadrinhados’ pelo NHS, ajudando-o a enfrentar o maior desafio sanitário do Reino Unido no pós-pandemia: ancorar o sistema público em self-care’. Essas ferramentas, ainda embrionárias, serão enriquecidas de forma a suprir as necessidades da chamada saudabilidade-nativa (native-healthiness), aquele ‘istmo’ que vai florescer nas camadas populacionais que vivenciaram a pandemia. Em quase todas as principais democracias globais, as lideranças governamentais foram as grandes derrotadas no cataclisma pandêmico. Deixaram a desigualdade proteger o vírus, e a distribuição de vacinas proteger a desigualdade. Nesse sentido, todas as principais políticas do NHS, por exemplo, bem como das principais nações do G50, vão envolver um grande esforço voltado ao autocuidado. Sem ele, é provável que o século termine como em março de 2021: óbitos acumulados pelos corredores esperando atestado.

Ao contrário do que possa parecer, digital self-care não é uma imersão radical na biofera on-line, pelo contrário: os usuários buscam cada vez mais se distanciar da impedância digital de telas, zooms, games, movies, etc. Um trabalho publicado em 2019 por pesquisadores da University of Oxford (“Self-Control in Cyberspace: Applying Dual Systems Theory to a Review of Digital Self-Control Tools”) analisou 367 aplicativos digitais de autocuidado, descobrindo que o recurso mais comum entre eles era: 'bloquear ou remover distrações' (74%). Ou seja, o estudo mostrou que o “bem-estar-digital” envolve também a capacidade do aplicativo de ajudar o usuário a se desligar do próprio mundo digital. Matthew James Dennis, pesquisador da University of Twente (Holanda) e autor de “Cultivating Our Passionate Attachments” (2020), explica: “Tudo indica que vamos conviver bem com as aplicações on-line, que podem otimizar o florescimento humano, especificamente quando voltadas ao cultivo do bem-estar. Embora possa parecer preferível que as práticas autocuidativas sejam realizadas num contexto da vida real, poucos conseguem desfrutar dessa possibilidade. Assim, neste século, muitas das abordagens em autocuidado serão desenvolvidas por mecanismos que só a tecnologia digital poderá prover”.

Em seu livro “Humano, Demasiado Humano” (1878), Nietzsche colocou ‘todas as fichas’ no poder do autoconhecimento. Para ele, tudo rodopia ao redor do autodomínio, implicando com isso adquirir “tanto conhecimento sobre nosso corpo e nossa mente quanto for humanamente possível”. O filosofo alemão levou ao paroxismo a visão de que “cuidar de si mesmo sempre será mais importante do que deixar-se cuidar pelos outros”. Ele não só pressagiou o século XXI como também mostrou que nunca seria um guia para aqueles que pensam como ele, mas principalmente para aqueles que pensam por si mesmos.

Guilherme S. Hummel

Coordenador Científico – HIMSS Hospitalar Forum

eHealth Mentor Institute (EMI) - Head Mentor