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Milagre da Conversão: quando o Antivacina encontra um tubo endotraqueal

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A-Prick-of-Doubt

Anti-vaxxers e a difícil tarefa de sua conversão

Fernando Pessoa explicou a fragilidade diante da incerteza: “Minha inteligência tornou-se um coração cheio de pavor. É com minhas ideias que tremo e é com a consciência de mim que me esmago”. O poeta expressou um inequívoco dogma: somos quebradiços diante da realidade. Pacientes mais graves da Covid-19, por exemplo, podem precisar de ‘oxigenação forçada por ventilação’, quando um tubo endotraqueal é inserido pela boca, adentrando a traqueia e chegando ao pulmão. Em geral sedado, o paciente recebe uma carga assustadora de desconforto com reflexos paralelos, como náuseas, vômitos, dor, deglutinação, etc.  O procedimento exige perícia, pois a intubação pode gerar danos cerebrais, parada cardíaca e até a morte. Trata-se, enfim, de um dos ‘procedimentos-covidianos’ mais ásperos e desconfortáveis, capaz de aterrorizar qualquer paciente, ou até converter alguns anti-vaxxers em militantes ativos da vacinação.

No século XVIII, Voltaire escreveu que os ingleses eram “tolos, porque dão varíola aos filhos para evitar que a contraiam; e loucos porque comunicam arbitrariamente a eles uma terrível enfermidade apenas para preveni-los de um mal incerto”. Talvez na época fosse coerente a repulsa do pensador: uma vacina era uma agulha de cerzir coberta de pus extraído de uma vaca doente. Se a ciência imunológica avançou, os movimentos antivacinação também se reciclaram. Nos últimos tempos foram estimulados por ‘fundamentalistas-antivacina’, como o ex-médico e ex-pesquisador Andrew Wakefield, que em 1998 publicou um texto (“MMR vaccination and autismo”) na revista The Lancet estabelecendo uma suposta relação entre a vacina tríplice e o autismo. O fraudulento artigo foi rechaçado à exaustão por inúmeros estudos, sendo que em 2010 o Conselho Médico Britânico caçou sua licença e o acusou de fraude e desonestidade ética (condenado pela justiça em 2014). Mas o estrago já estava feito.

Um terço da população do Reino Unido diz não ter certeza se quer ser vacinada contra o coronavírus, segundo pesquisa da Royal Society e da British Academy. Nos EUA, metade também diz ter dúvidas.  No Brasil, o Programa Nacional de Imunizações para 2019 mostra que após 20 anos o país sofreu uma queda sensível na cobertura vacinal de crianças, não atingindo a meta das principais vacinas para indivíduos com até 2 anos de idade. Na França, berço do iluminismo, da lógica cartesiana e de Pasteur, quase uma em cada duas pessoas manifesta não querer ser vacinada contra a Covid-19, segundo estudo da Ipsos e do World Economic Forum. Todos esses dados são incertos: dificilmente saberemos com certeza o volume de anti-vaxxers em qualquer canto do mundo antes da primeira vacinação em massa contra o coronavírus. O que realmente mantém os especialistas vigilantes são os “hesitantes”, aquelas pessoas que expressam “não sei, tenho medo de vacinar”. São indivíduos normais que desenvolvem alguma fobia a envolvimentos que não entendem (não dominam), e como proteção se rebelam (como expressa um velho ditado espanhol: “a ignorância é atrevida”). Compram com facilidade a informação conspiratória, sentem-se confortáveis em contrariar a medicina e são reféns do discurso tolo que os coloca como “reserva moral dos fantasmas da ciência”. No fundo, os radicais que se recusam definitivamente a qualquer vacina seriam apenas 7%, segundo pesquisa publicada em novembro pela JL Partners. Ainda assim, o mesmo estudo mostra que um em cada cinco indivíduos relutam em algum grau, alegando que os “testes são sempre incompletos”. Felizmente, aqueles que correm maior perigo (idosos) são mais entusiastas, com 9 em cada 10 deles dispostos a vacinação, segundo o estudo.

Uma das estratégias utilizadas pelos pesquisadores para neutralizar os hesitantes é ‘alarmá-los’. Em 2015, Zachary Horne, professor de psicologia da Arizona State University, dividiu 315 participantes em três conjuntos. O primeiro grupo leu histórias reais de crianças que contraíram sarampo (olhando fotos e detalhes) e se envolvendo no rol de advertências sobre a importância da vacinação. O segundo grupo simplesmente leu as estatísticas que mostravam que não há ligação entre vacinação e autismo, sendo que o terceiro leu sobre um tópico não relacionado. O grupo exposto às histórias reais das crianças teve maior probabilidade de mudar sua atitude em relação as vacinas do que os outros dois grupos. Outro estudo semelhante, publicado em 2019 (“Exposing vaccine hesitant to real-life pain of diseases makes them more pro-vaccine”), mostra que estudantes universitários que hesitaram em se vacinar foram designados para entrevistar pessoas que tinham doenças evitáveis​​por vacinação, como a poliomielite. Depois disso, quase 70% deles se tornaram pró-vacina.

O professor de ciência política da Oklahoma State University, Matt Motta, também publicou em março de 2020 um trabalho (“Correcting Misperceptions about the MMR Vaccine: Using Psychological Risk Factors to Inform Targeted Communication Strategies”) mostrando que quando as pessoas preocupadas com a contaminação ouvem a descrição dos ‘sintomas do sarampo, descritos em profundidade’, reduzem em 10% a aceitação de informações incorretas sobre a vacina. Em 2015, Kristen O'Meara, uma ‘xiita da antivacinação’ com participação nos grupos anti-vaxxers, viu seus três filhos sofrerem um brutal ataque de rotavírus, com vômitos e intensas diarreias. Enquanto lutava pela recuperação deles, O'Meara teve a “percepção profilática” de que existiam vacinas para o rotavírus. Comprou livros, buscou vídeos e conversou com pessoas com igual problema e que se ampararam na vacina. Sua conversão foi dolorosa e combatida por seus pares antivacinação, mas foi lúcida e real. Afinal, os riscos da não-vacinação estavam dentro da sua casa e gemiam de desespero.

Outra estratégia utilizada pela comunidade médica está centrada na ‘autoridade da ciência e da medicina’. Pediatras podem, por exemplo, dizer aos pais durante a consulta do filho quais vacinas ele deve receber, ao invés de perguntar “quais vocês gostariam que ele recebesse?”. De acordo com uma pesquisa (“The Architecture of Provider-Parent Vaccine Discussions at Health Supervision Visits”), os pais têm muito mais probabilidade de evitar a vacinação se o pediatra transfere a responsabilidade a eles, expressando, por exemplo: "O que você quer fazer sobre as vacinas?". No estudo, os pais tinham chances significativamente maiores de resistir às recomendações da vacina quando o médico usava um formato de propósito participativo e não presuntivo-probabilístico (“Ele realmente precisa dessas injeções”). Uma das consequências desse debate é o crescimento contínuo das argumentações em favor da compulsoriedade das vacinas.

É notório que vários governos (incluindo os altamente competentes na produção de vacinas) dedicam poucos recursos para neutralizar a relutância dos hesitantes da vacinação contra a Covid-19, conforme expõe o relatório da força-tarefa de epidemiologistas e especialistas em comportamento, coordenada pela Johns Hopkins University e publicado em julho de 2020 (“The Public’s Role in COVID-19 Vaccination”). Nesse viés, Brasil e EUA são exemplos claros de comunicação federal ineficiente para acalmar a população e explicar as falências da não-vacinação. Brincam de cabra-cega com o público noticiando com alarde o avanço das vacinas, mas pouco educando-o a não ter medo delas. Olga Khazan, jornalista premiada duas vezes com o prêmio International Reporting Project's Journalism Fellowship, editora de saúde da publicação “The Atlantic” e autora da obra Weird: The Power of Being an Outsider in an Insider World” descreveu em outubro de 2020 uma ‘sugestão-metodológica’ para médicos e lideranças políticas:  “...talvez eles pudessem traçar o perfil de cada criança que já teve efeitos colaterais pós-vacina e descrever exatamente como os sintomas estavam (ou, mais provavelmente, não estavam) relacionados à imunização. Talvez pudessem guiar os leigos hesitantes pelo interior dos estudos que desmentem as lesões por vacinas, mostrando claramente por que a documentação científica não mostra aquilo que os céticos da vacinação querem que mostre. Talvez os médicos pudessem encorajar as pessoas a se imaginarem engasgando com um tubo endotraqueal de ventilação, enquanto seus familiares assistem pelo vidro do lado de fora da UTI. Talvez pudéssemos fazer todas as opções acima simultaneamente e dar a todos uma chance maior de imunidade coletiva”.

 Sobre o autor

Guilherme S. Hummel é Coordenador Científico – HIMSS Hospitalar Forum

eHealth Mentor Institute (EMI) - Head Mentor

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