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100 dias de internação na UTI: solidão suprema na Covid-intensiva

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Devastador relato de um sobrevivente das UTIs

Raramente podemos ter a narrativa de um healthtech-senior sobre seus 100 dias de internação por Covid-19. Atento, perspicaz e especialista em digital health, Frank Cutitta, professor da Northeastern University (Boston) e CEO do HealthTech Decisions Lab, relatou sua odisseia hospitalar como um “ourives-relojoeiro” que é obrigado a entrar em um de seus relógios para conhecer por dentro o sofrimento e a solidão.

Em março de 2020, Cutitta sentiu algum desconforto com sintomas que considerou alergia. Alguém mais próximo lhe emprestou um oxímetro. Com 67 anos, e como a maioria dos sêniores no princípio da Covid-19, não se preocupou quando seus níveis de saturação indicaram 82%. Outro alguém, também próximo, foi menos ingênuo e sentenciou: "Você vai estar no hospital muito rapidamente". Poucos dias depois seus pulmões acumulavam líquido, os rins falhavam e em poucas horas estava intubado no Massachusetts General Hospital (Boston, EUA). Na UTI, foi colocado em um respirador, recebeu propofol e desapareceu da consciência por mais de um mês. Quando retornou, descobriu uma implacável realidade das unidades de terapia intensiva: solidão.

A pandemia evidencia o horror e o sofrimento dos que ‘esperam’ sozinhos nas UTIs. Para os que não resistem, chamam de "morte higiênica", mas Cutitta resistiu, e seu contato com a solidão foi arrasador. Passava 23 horas por dia sozinho apenas com a interação ocasional de um médico mascarado, que também era refém de outro tipo de isolamento. Quando finalmente pode dizer ao médico como se sentia, este lhe respondeu que também estava sozinho“como oncologista, estou ansioso por segurar a mão de meus pacientes novamente”. Para Cutitta foram semanas infindáveis imerso na mais profunda incomunicabilidade. "Eu era alguém solitário, sendo tratado por outras pessoas não menos solitárias", explicou ele depois de recuperado.  

Além dos desafios emocionais e do exílio social, ele também pode observar algo que lhe era familiar, mas que nunca tinha percebido de modo tão visceral: as tecnologias hospitalares podem também ser dores de cabeça por si só“Registros médicos eletrônicos são ótimos, se as pessoas os leem", explicou eleComo seu prontuário continha muitas e complexas informações, suas enfermeiras inicialmente não perceberam que haviam lhe prescrito gelo, o que ele desejava desesperadamente. Da mesma forma, Cutitta pode adentrar nos imbróglios da interoperabilidadeainda muito presente nas instâncias de terapia intensiva. Após 27 dias entubado a um respirador, chegara o momento de removerem o tubo. Seus pulmões haviam melhorado o suficiente para a remoção, mas especificações em seu EHR esclareciam as peculiaridades do seu caso, que não puderam ser acessadas em outra unidade hospitalar por falta de “integração sistêmica”. Assim, o processo de extubação foi extremamente conturbado e difícil, cuja descrição de Cutitta vai do riso a mais profunda tragédia: "Pelo que sei, ainda estão consertando o buraco no teto de quando saltei da cama, sendo que hoje já tenho uma vaga ideia do que é ter um bebê".

Aos olhos de Leslie Cutitta, sua esposa, as coisas não eram mais animadoras. Por duas vezes recebeu ligação dos médicos perguntando se gostaria que continuassem com ‘as medidas extremas para manter o marido vivo’. Na primeira conversa, ao final de março de 2020, foi proposta a ‘possibilidade de poupar Frank’, ou tentar alguns medicamentos e tratamentos experimentais para Covid-19. Poucos dias depois as visitas ao hospital foram proibidas e Leslie não poderia mais ter acesso pessoal ao marido. Ela sabia que ele gostaria que todas as medidas de salvamento possíveis fossem aplicadas. Assim, os Cutittas aguentaram firmes, observando os cuidadores aplicar várias rotinas experimentais e reparadoras (um procedimento novo podia criar uma nova dificuldade).

Após a remoção da máquina de oxigênio, Cutitta simplesmente não acordou. Normalmente leva horas (talvez um dia), para que o paciente volte à consciência (o corpo precisa desse tempo para liberar os medicamentos que o mantêm sedado e confortável). Mas a Covid-19 também foi diferente nesse tema. Médicos nos EUA e em outros países observaram que ‘pacientes covidianos’ após a extubação podiam permanecer inconscientes por dias, semanas ou mais, sendo esse estágio denominado “prolonged-coma”. “Foi um período longo e difícil por não saber se o Frank que conhecíamos e amávamos voltaria ao normal”, explicou LeslieÀ medida que ele não recuperava a consciência, ocorreu uma nova conversa entre a equipe médica e a esposa, novamente indagando se deveriam continuar com o “suporte à vida”. Embora ele não precisasse mais do ventilador, estava inconsciente e atado a outros tubos (alimentação, fluídos intravenosos, cateteres para dejetos corporais, etc.). "Se Frank não voltar mentalmente e ficar ligado a uma máquina de diálise pelo resto da vida, é algo que você e ele poderiam aceitar?", explicou um dos médicos a Leslie. Mas em 4 de maio, duas semanas depois do coma induzido, Frank piscou. Leslie e suas duas filhas puderam, enfim, assisti-lo no Facetime“Sorria, pai”, “Levante o polegar!” Pelo menos elas já sabiam que ele estava lá, em algum lugar, ainda que fosse por alguns momentos a mais. Passou-se mais uma semana antes que Frank pudesse ouvir a voz da esposa, e ele ainda passaria um mês no Spaulding Rehabilitation Hospital antes de voltar para casa. 

No ambiente residencial, Cutitta aproveitou as vantagens do telemonitoramento, das videoconsultas, de pedômetros e outros devices, além de uma iluminada ‘cadeira de banho automatizada’ que lhe permitia a limpeza com menos cansaço. Todo esse calvário foi explicado pelo próprio Frank, que recuperado foi conferencista no HIMSS 2021 realizado neste mês de agosto em Las Vegas. De toda descrição, o que mais corrói sua memória foi a solidão. Em seus 100 dias de hospitalização, onde passou 40 em coma induzido, a única coisa que talvez nunca mais saía de sua mente foram os infindáveis momentos do mais profundo insulamento social. Em meio às experiências da ‘quase-morte’, é a solidão que ainda judia de suas recordações. “Você fica sozinho enquanto está em coma. Quando acorda, você tenta desesperadamente retroceder e reconstruir o que aconteceu”, explicou ele. Quando em casa, Cutitta passou a estudar e pesquisar sobre esse vazio existencial causado pela “solidão em um leito de UTI”. Em seus estudos, identificou que a solidão prolongada pode ter um efeito negativo no sistema imunológico, bem como no cérebro.

“O antídoto para a solidão em coma é garantir que o cérebro esteja sendo estimulado por vozes, músicas e sons familiares”, diz Cutitta, que recebeu extrema unção por duas vezes. “O anonimato alimenta a solidão. Era um período sombrio porque passava 22 horas - alguns dias 23 horas - sem falar com ninguém. Os médicos só podiam falar comigo por 10 minutos. Era como uma prisão”, explicou elePoluição sonora, dor, ansiedade, desinformação, rotinas sendo realizadas aleatoriamente, tudo agrupado e acrescido da ausência familiar que pode desaguar no desequilíbrio psicológico que, consequentemente, influencia a recuperação. Sua descrição sobre o processo de medicação’ também é trágica: “Os hospitais tendem a querer medicar a solidão. Oferecem uma droga poderosa para reduzir a depressão, que no fundo não é realmente uma cura para o que está acontecendo ali. Não sabia mais como dormir, e tinha até medo de tentar. Ao final do dia, percebia apavorado que a medicação não estava funcionando: senti que não conseguiria mais chegar ao sono, sem falar do medo de acordar de manhã e começar tudo de novo”, relatou ele. 

Muitos aspectos deverão mudar nas Unidades de Terapia Intensiva depois da Covid-19, sendo um deles a reciclagem das práticas de humanização, não só para os pacientes como também para o corpo de profissionais intensivistas. Estudo publicado em julho de 2021 na Nursing in Critical Care, realizado por pesquisadores da King Juan Carlos University, Madrid (“Resilience and anxiety among intensive care unit professionals during the COVID-19 pandemic”), mostrou que profissionais das UTIs desenvolveram na pandemia sintomas consistentes de TAG (transtorno de ansiedade generalizada). O estudo ressalta a necessidade de incorporar programas que mitiguem os efeitos psicológicos e promovam estilos de enfrentamento adaptativos.

Outro trabalho, publicado na BMJ em 2020 e desenvolvido por pesquisadores da Università degli Studi di Modena e Reggio Emilia, Itália (“How to humanise the COVID-19 intensive care units”) ressalta a imensa necessidade de repensar o ambiente social das UTIs. “A pandemia revelou o quão despreparados estamos como cultura, como indivíduos e como força de trabalho para enfrentar o sofrimento e a morte em tão grande escala. Na cultura ocidental, o sofrimento e a morte raramente são discutidos, e costumam ser considerados tabu. Porém, nos últimos meses, desde que a pandemia explodiu, eles estão nos consumindo e mostrando que muita coisa precisa ser feita em termos de humanização nas Unidades de Terapia Intensiva”, ressalta o estudo.

A separação familiar é particularmente problemática e destrutiva nos ambientes de cuidados intensivos. Um sério estudo publicado em 07 de agosto último pela revista científica Heart & Lung (“The Lived Experiences of Family Members of Covid-19 Patients Admitted to Intensive Care Unit: A Phenomenological Study”) mostra a experiência de familiares com pacientes internados nas UTIs durante a Covid-19. O estudo analisa com acurácia os sentimentos de medo, distanciamento, desamparo, solidão, culpa e desorientação. O trabalho realizado por pesquisadores da Sant'Andrea University Hospital (Roma) é uma peça fundamental para entendermos o impacto emocional nos familiares. A conclusão do trabalho é voraz: “ser excluído do processo de cura aumenta o medo do futuro”. Ou seja, não estar próximo ao ente querido e não o apoiar diretamente tem uma reação frontal na ‘continuidade da vida futura’ do paciente e dos familiares, seja qual for o desfecho. Nessa direção, o estudo mostra a urgência de se criar abordagens novas que discutam as restrições de contato direto com os pacientes.

“A grande mentira para as pessoas solitárias é quando alguém diz: 'Volto em um minuto'. Não há relação temporal da palavra 'minuto' com a realidade dentro de uma UTI. O tempo é uma abstração”, explicou Cutitta. De qualquer forma, apesar de todos os problemas, e sob qualquer ótica, a ciência médica intensivista ainda é capaz de dar um poderoso ‘drible’ na Covid-19: fazer-nos pensar que tudo já se foi, e quando não se vai, continuamos por aqui, como Frank Cutitta.

Guilherme S. Hummel

Scientific Coordinator Hospitalar Hub

Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)

TAG: Hospitalar