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“Medicina Generativa”: quando os médicos vão clinicar sem a doença

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A construção de um novo modelo de medicina, onde a saúde fica em primeiro plano

O paciente entra no consultório médico e este lhe pergunta: “Como você se sente? Onde dói? Qual é o problema?”. Refestelado na cadeira o paciente responde: “Estou ótimo, nenhuma dor. Me sinto muito bem”. O médico insiste: “Bem, ótimo, então porque você veio?”. A resposta é desconcertante: “...quero saber como estará minha saúde daqui a 3 anos...”

A medicina, o médico e a prática clínica estão, na maior parte dos casos, centradas na doença; qualquer doença. Desde a medicina mágico-religiosa da Antiguidade, passando pela medicina empírico-racional (Egito, 3 mil a.C), alcançando Galeno (131-200) e Paracelso (1493-1541), e chegando ao modelo biomédico, sem esquecer das ideias de medicalização (1975) e da medicina baseada em evidências (MBE), a prática médica tem sido conduzida por um eminente percurso reacionário. Aqui é preciso lembrar da origem dessa expressão: vem do Francês (século XIX), “réactionnaire”, que deriva do Latim, significando “agir em resposta a um estímulo”. Não confundir com a conotação de Marx, que a utilizou  para defender a sua “luta de classes”. Medicina reacionária, portanto, é um ciclo de ações diagnósticas, terapêuticas e holísticas que objetivam “agir em função de um quadro sintomatológico claro”. Simples assim.

A “Medicina Generativa (MG)” está chegando e vem refinar esse ciclo. Lastreada em ferramentas algorítmicas (científicas, técnicas, digitais e biotecnológicas), a MG é capaz de aglutinar informações genéticas, celulares, orgânicas e holístico-comportamentais dos indivíduos para prevenir, predizer, personalizar e promover a “saudabilidade do paciente”, fornecendo a ele abordagens precautelares. Na “Linguística”, por exemplo, o filósofo e cientista cognitivo Noam Chomsky desenvolveu (1950) a sua “Teoria da Gramática Generativa Transformacional”, um marco importante no campo linguístico. Para ele, a linguagem não é apenas um conjunto de sinais associados a significados, mas um sistema de ‘regras mentais’ que permite aos indivíduos compreender e criar (gerar) frases. Chomsky distingue a (1) competência linguística (o conhecimento implícito que um falante tem da sua língua) do (2) desempenho linguístico (como esse conhecimento é usado na prática), estando sua tese centrada na estrutura 1. Assim, sua expressão generativa” explica a capacidade humana de compreender e até produzir novas linguagens, gerando frases que nunca ouvimos antes. Chomsky espantou o universo linguístico da época, pois acreditava que todos os humanos nascem com uma capacidade inata para adquirir a linguagem (ideia que contradiz a visão behaviorista de que a linguagem é aprendida através da imitação e reforço).

Nesse sentido, a Medicina Generativa (MG) marcará uma notável evolução na prática clínica, integrando os vetores da medicina personalizada, preventiva e preditiva para “gerar novos eixos de competência e desempenho” a serviço da saúde do indivíduo. Seu objetivo será antecipar cuidados de saúde mais precisos e, acima de tudo, “sob-medida” para cada paciente. O núcleo da Medicina Generativa incorpora o LLM - Deep Learning Language Model (a modelagem por trás do ChatGPT e seus coirmãos) como um componente fulcral nas análises, interpretações e aplicações clínicas. Sim, em breve você verá emergir um novo perfil de profissional de saúde: o médico generativo. Ele não apenas utilizará os LLMs em suas análises cotidianas, mas terá orgulho de fazê-lo. O ‘generativo’ fara questão de mostrar aos pacientes que sua conduta é composta de atributos cognitivos próprios e das propriedades generativas dos LLMs. Afinal, pacientes querem assertividade, agilidade diagnóstica e previsibilidade clínico-assistencial, pouco importando se o médico extraiu suas habilidades de um conjunto de decisões individuais ou se teve apoio da instrumentação algorítmica.

“Sem prevenção não há salvação”, disse o governo dos EUA em 2010. O estudo “Preventive Services Covered by Private Health Plans under the Affordable Care Act”, publicado em maio de 2023, mostra como a exigência dos Planos de Seguros Preventivos se acomodaram depois de dez anos da legislação Affordable Care que os exigiu (“os planos de saúde privados devem fornecer cobertura para uma variedade de serviços preventivos recomendados e não podem impor compartilhamento de custos, como copagamentos, franquias ou cosseguros aos pacientes que recebem esses serviços”). A pesquisa mostra de forma inequívoca como os “serviços preventivos baseados em evidências” salvam vidas e melhoram a saúde coletiva: (1) identificam doenças mais cedo; (2) gerenciam elas com mais eficácia; (3) são tratadas antes de serem condições complicadas e debilitantes; e (4) vários de seus insights são mais econômicos para o sistema como um todo.

Na Medicina Generativa, a prevenção e a antecipação de patologias serão alcançadas identificando precocemente os riscos embutidos nas características genéticas, ambientais, tecnológicas (EHR) e estilo de vida do paciente. A palavra 'generativa' ressalta a habilidade dos LLMs de 'gerar' previsões e predições para novos tratamentos a partir de uma matriz abrangente de “metadados biomédicos”. O papel do médico generativo se alinhará à ontologia médica, que enfatiza a perspectiva holística do paciente, considerando este como um todo e não apenas como alguém portador de uma doença. Na era da Medicina Generativa, a “inteligência de máquina” será utilizada como uma “extensão das habilidades do médico”, sendo seu foco principal a perenidade do bom estado de saúde do paciente. O médico generativo será aquele capaz de prenunciar as falências corpóreas, permitindo uma intervenção precoce e de maior eficácia clínica. Nos próximos anos, a nova medicação revolucionária será a Prevenção.

O consagrado cardiologista Eric Topol, cientista, fundador e diretor do Scripps Research Translational Institute, vai mais longe: “Você já pode conversar tão bem com IA generativa para assuntos médicos, mesmo que ainda não haja nenhuma IA acessível e pré-treinada com a literatura médica e dados multidimensionais de milhões de pacientes. A arquitetura “Transformer” [o “T” do GPT] é ideal para essas entradas, permitindo resolver problemas nunca antes vistos, aprendendo com outras entradas e tarefas. Chamamos isso de GMAI (Generalist Medical AI) e sua configuração é notavelmente flexível, com uma lista muito longa de aplicações possíveis. Pacientes fazendo perguntas sobre seus sintomas e dados: o GMAI pode criar uma visão holística da condição de um paciente usando várias modalidades, desde telas médicas não-estruturadas até leituras contínuas de monitores de glicose, ou registros de medicamentos fornecidos pelo paciente”.

Importante ressaltar que na Medicina Generativa o médico será valorizado e remunerado por sua capacidade de “manter o paciente saudável”, ao invés de ser reconhecido somente por sua habilidade de “remover doenças”. Este é um desvio significativo nos paradigmas tradicionais da saúde, colocando ênfase na prevenção e manutenção da saúde. Os Modelos de Linguagem de Aprendizado Profundo (LLMs) serão a bússola dos médicos, permitindo que eles se dediquem mais intensamente ao monitoramento (remoto) do paciente, alertando sobre as rotas de “bem-viver” que podem impactar as rotas do bem-estar (saudabilidade). Pura mentoria. Nesse sentido, a conciliação da Biogenética, dos LLMs e do Registro Eletrônico do Paciente será o “master-index” do profissional de saúde, fazendo com que ele tenha acesso a um amplo espectro de informações que identifiquem fatores potenciais de risco, intervindo antes que eles cheguem a ser incontroláveis ou incontornáveis.

Frase de efeito: “a essência do ser humano reside no anseio de uma vida plena e saudável, e não apenas numa existência definida pela ausência de doença”. Como discurso pode ser válida, como regra de vida é pobre. “A existência precede a essência”, explicou Sartre (“O Ser e o Nada”, 1943), mas também Sócrates, Agostinho, Kierkegaard e outros. Também na Saúde não somos nada até existirmos como indivíduos, até crescermos, vivermos, sofrermos e aprendermos a conviver com nossas doenças e cicatrizes. Talvez (mas só talvez) possamos com o passar da idade manifestar alguma essência: “lutei contra um câncer e hoje sei o significado da ausência de doença”.

A Medicina Generativa encontra eco no “existencialismo”, pois médicos e pacientes precisam construir sua essência por meio de uma existência real e cotidiana com biodados e ferramentas preventivas. O GMAI deverá criar uma visão holística da condição do paciente usando aplicações digitais inteligentes. Todavia, sempre é bom ressaltar que a "medicina generativa" não está imune a vários desafios, incluindo as questões éticas de privacidade e segurança de dados médicos. Mas nada que já não seja imperativo de responsabilidade, mesmo antes de qualquer LLM ter cruzado nosso vasto mundo. A ciência médica reacionária poderá e deverá continuar o seu próspero rumo, até porque não abduziremos a doença da vida humana. Mas, da mesma forma que a “medicina regenerativa” se concentra na regeneração de células, tecidos ou órgãos danificados, restabelecendo uma função original, a “medicina generativa” terá sua abordagem centrada na personalização e prevenção do cuidado, usando genética, biologia molecular, inteligência artificial, big data, entre outras ferramentas, para “estabelecer soluções preventivas de saudabilidade para cada indivíduo”.

Nos próximos 2 ou 3 anos veremos na grande mídia campanhas publicitárias de players da Cadeia de Saúde ressaltando o ‘salto generativo’: “Venha conhecer nosso complexo médico generativo! Viste nosso hospital”; ou “Conheça o novo Seguro Médico Generativo, que protege você da doença que não precisa ter!”; ou ainda “Dr. Silva, médico generativo, usuário dos novos modelos de máquinas inteligentes preditivas!”.

Chris Phipps (antigo chefe de linguagem natural da IBM), explica o que vem pela frente: “duas pessoas pensam numa palavra e dizem-na em voz alta simultaneamente: você diz “bota” e eu digo “árvore”. Criamos essas palavras de forma completamente independente e, no início, elas não têm nada a ver uma com a outra. Os dois participantes seguintes pegam as duas palavras e tentam inventar algo que têm em comum e dizem-na em voz alta ao mesmo tempo. O jogo continua com muitas duplas de pessoas, até que dois participantes dizem a mesma palavra. Talvez ambas as pessoas digam “lenhador”. Parece magia, mas trata-se realmente de usar o cérebro humano para raciocinar sobre o input (“bota” e “árvore”) e encontrar uma ligação. Nós fazemos o trabalho de compreensão, não a máquina”.

O mesmo se dará com a medicina generativa: o uso de enormes capacidades analíticas vai amalgamar a compreensão de moléculas, engenharia celular, informações genéticas, comportamentos individuais ou familiares, sintomas, histórico de dados clínicos (EHRs), etc. capacitando os médicos a “identificar simultaneamente entre milhões de condutas uma única”, que será o “lenhador” de cada paciente.

Guilherme S. Hummel

Scientific Coordinator Hospitalar Hub

Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute)